Nos últimos quatro meses eu estive em museus numa proporção que jamais imaginei poder cumprir. Alguns eu já conhecia, outros desejava ver ao vivo, outros ainda nem me passavam pela mais delirante.
Pode o prezado leitor pensar num pintor consagrado, na tradição ocidental, mas também em outras latitudes (por exemplo o japonês Hokusai), e é quase certo que o vi ao vivo. Estive com ele de perto, tentei dar a ele o tempo necessário - ou melhor, dar a mim o tempo cabível para entrar em sintonia. (Vai outra convicção minha: se um artista já provado pela dura exigência do largo tempo não te falar à alma, podes estar certo que o problema é teu, não dele.)
De museus de pintura, o que mais me pegou pelas tripas, de fato, considerando tudo que vi na vida, foi o Rijksmuseum, de Amsterdã. Não dá tempo aqui de explicar tudo, mas fico com uma identificação imediata: na fachada, imponente como cabe para um museu de seu porte, há estátuas e relevos de gente trabalhando. Simplesmente trabalhando em ofícios manuais. Tem lá um ferreiro, um carpinteiro.
E lá tem também, agora, o meu coração. Ver gente como eu, que não tem antepassados nobres nem santos, consagrada na fachada, foi um choque - o melhor choque. Lá dentro, nem se fala. Não falo de Rembrandt, chapa branca, mas de Vermeer e de Jan Steen, assim como de um singelo pintor do século 19 chamado Jozef Israëls, que passou a ser meu amigo de infância.
Diante de um Vermeer, amor antigo, foi que me ocorreu uma cena inesquecível: havia um sujeito ali, olhando-o pacienciosamente; eu atrás dele, parado, também indagando do quadro, uma daquelas cenas caseiras movimentadas com sutileza pelo pintor - uma carta que chega, um mapa na parede, um sorriso ao interlocutor. Eu estava bem, ali, o cara na minha frente podia permanecer. Mas aí ocorreu de este meu companheiro de admiração se dar conta da minha presença, abrir um meio sorriso como que de desculpas e sair dali - para me dar a mesma chance que ele tinha tido.
E ali fiquei eu, naquele encontro privado com - com o quê mesmo?
Com o tempo: o tempo acumulado num espaço sutil entre mim e o quadro, entre um sul-americano qualquer e o pintor holandês famoso.
Bom Ano-Novo, caro leitor.