
Morto nessa quarta-feira (24/6), em Porto Alegre, aos 80 anos,Nico Fagundes escreveu colunas memoráveis em Zero Hora. Relembre algumas delas:
Rituais de despedida do folclore gaúcho
(Zero Hora, 6/11/1999)
Fui levar as rosas vermelhas que ela amava tanto ao túmulo da Luana e me surpreendi com a ausência de lápide, do nome dela, enfim, essas coisas que dão a impressão de que a pessoa morta deixou saudade. Lá estavam encaixadas no cimento nu apenas umas tristes flores de plástico. Ela era bonita, jovem, faceira, elegante, gostava de rosas (verdadeiras) e perfumes bons. Foi uma pessoa extremamente bondosa, que gostava das pessoas. Amou intensamente e foi amada. E agora é aquilo ali, um túmulo anônimo, sem lápide, com rosas de matéria plástica. Curvei a cabeça e orei, em silêncio: "O Senhor te abençoe e te guarde. O Senhor faça resplandecer o Seu rosto sobre ti. E tenha misericórdia de ti. O Senhor sobre ti levante o Seu rosto. E te dê a paz".
O que é a vida! No dia 4, eu cheguei aos 65 anos. Gosto de pensar que atinjo essa idade em pleno gozo de minhas faculdades físicas, espirituais, intelectuais, emocionais e morais. Coerente. Mas me obrigo a pensar: quantos anos mais eu ainda posso viver assim? Cinco? Dez? Não sei, mas sei que não quero me tornar um estorvo. Quando este velho corpo esgualepado se tornar uma carga pesada demais para mim e para os meus, estará na hora de partir, "de alma forte e coração sereno", como sempre. A Última Cavalgada vai ser apenas isso - uma cavalgada a mais, das muitas que eu tenho feito, só que sem retorno.
A ciência fala em prolongar a vida humana até os 130, 140 anos. Se for em boa forma, tudo bem, com o vivente cheio de alegria e dando alegria aos outros, mas se for a vida de certos autênticos cadáveres que apenas respiram pela teimosia dos médicos, verdadeiros mortos-vivos, zumbis da ciência, aí não. E o folclore do homem, que nasce antes dele, vive além de sua morte. Sim, nasce antes do próprio homem: há uma série de fórmulas folclóricas para provocar (ou impedir) a gravidez. Outra, para definir o sexo do bebê. Viram? Nem nascemos ainda e o nosso folclore já está aí. Lá pelas tantas, morreremos. Mas o nosso folclore continua. O ritual fúnebre comum e naturalmente folclórico. Os terços e incelenças que se rezam nos cemitérios, também. Há o terço rezado, o terço cantado e o Paixão Côrtes gravou um impressionante "terço chorado" que eu nunca tinha ouvido.
Shana Müller: "Hasta siempre, comandante!"
Na região do Alegrete, em Manoel Viana e em São Francisco de Assis (e talvez ainda nas Missões), existe o "velório da cruz", que eu e a professora Vera Álvares da Cunha documentamos. Como a cruz do túmulo no cemitério tem que ser de ferro, leva tempo para fazer, há vários modelos, a família tem que escolher etc. Então, vela-se o morto com caixão e tudo e ele é plantado devidamente em campo santo. Mas a cruz só fica pronta depois de sete dias, ou de um mês e precisa ser velada, também, toda uma noite, igual que o morto. Só que o velório da cruz não é tão triste. É mais descontraído e eu sei de alguns onde a viúva já saiu de namorado fresco... Até em afastar a cruz para um canto, puxar uma cordeona e se dançar "porque o finadinho gostava tanto", já ouvi falar.
O "velório de anjinho", isto é, da criança que nasce morta ou morre sem batismo e que vai ser enterrada em lugar próprio no cemitério, afastado do campo santo, é também impressionante, com o cadaverzinho todo enfeitado e pintado, sem importar o sexo, com manto de seda e coroa. Na região de Torres, o cortejo fúnebre de anjinho podia ser acompanhado até por tambores e foguetes, em sinal de alegria pela segurança do paraíso para o pequeno ser que subia.
A "coberta dalma" é a melhor roupa do morto que se dá ao seu melhor amigo, para que a use no velório e no enterro, como sinal de amizade e respeito, mesmo porque o morto é normalmente enterrado com mortalha.
Vinícius Brum: "Lá no céu de Aldebarã"
E as carpideiras na região de Pelotas? Mulheres (quase umas profissionais do choro) pagas para chorar com grandes lamentações e pranto no velório e no enterro. Cortam o coração da gente e não são nem conhecidas do morto, quanto mais parentes.
As "assombrações" se encaixam no mesmo sistema. O folclore acredita que depois de mortos podemos voltar para assombrar o mundo dos vivos, dando conselhos, mostrando enterros de dinheiro, pedindo missa ou vela etc.
"Mors omnia solvit?" O folclore diz que não.
Charamuscas & picholeios
(Zero Hora, 30/11/2002)
Agora é oficial: querem me matar mesmo. Há claramente visível uma tentativa de assassinato no ar. O que não pôde a isquemia, o carinho deste povo maravilhoso está prestes a conseguir.
Nesta onda emocional de sucessivas homenagens que estão sendo tributadas a mim, o meu amado Alegrete não quis ficar de fora: o glorioso 6º Regimento de Cavalaria, onde eu servi e dei baixa como cabo apto à promoção de 3º sargento, incluiu o meu nome na sua exigente e seletiva Legião de Honra. O Coronel Fernando Sampaio Costa, comandante, e o major Delano Bastos de Miranda, subcomandante, me botaram na tribuna e fizeram a tropa desfilar em minha homenagem, esquadrão por esquadrão. Eu, veterano do Pelotão de Comando e Serviço do 1º Esquadrão de Fuzileiros, vi aquela rapaziada altamente traquejada entoar gritos de guerra e obedecer com coordenação impressionante às marciais vozes de comando de seus jovens oficiais. Com o peito estufado de orgulho, naquela hora esqueci os sogaços do AVC e renasceu em mim o velho cabo 412 da classe de 1953. Que coisa linda!
Na praça do Centro Cultural Adão Ortiz Haouayek, se apresentaram grupos de dança clássica, moderna e tradicionalista. Cada um melhor do que o outro. Afinal, o Alegrete velho campeiro hoje é o maior pólo de dança do Estado, em qualquer categoria, que o diga o recente festival de Bento Gonçalves. Quando executaram coreografias inspiradas no Canto Alegretense e em Origens (duas canções onde o meu irmão Bagre e eu somos parceiros), aquela multidão veio abaixo. A Academia Ballerina e Studio Um tem nível para qualquer platéia. E depois, que gente linda. Duvido que outra cidade tenha moças mais bonitas que as alegretenses. Pareciam estátuas vivas, leves como sílfides, com figurinos criados por mestres (soube agora, pelo Ernesto Fagundes, aqui em Porto Alegre, que outra academia de dança do Alegrete, a da Professora Maria Waleska, arrasou aqui no Parque da Redenção com o Canto Alegretense, domingo passado, na
abertura do festival de dança).
Personalidades comentam nas redes sociais a morte de Nico Fagundes
Quando eu fiz a letra do Canto Alegretense, os versos não me impressionaram muito. Gostava, é verdade, de expressões como "flor de tuna", "camoatim de mel campeiro", "pedra moura das quebradas do Inhanduí" e "ver o sol alegretense entardecer". Quando o Bagre botou a música em cima, aí já comecei a gostar de tudo. Mas foi quando, logo logo, a canção foi tema de um desfile escolar de 7 de setembro na cidade que eu senti que verdadeiramente o Canto Alegretense tinha algo especial. Virou não apenas a canção da nossa cidade, mas uma canção de todas as cidades gaúchas. Foi placa do Daer e agora é uma série de painéis na beira da estrada que vai do Rosário ao Alegrete.
E agora vai virar monumento na praça pública, em bronze, como convém, que é para ser eterna. Por decisão da CAAL, que é a nossa cooperativa agro-industrial do Alegrete, cujo presidente é José Alberto Pacheco Ramos, com apoio do prefeito José Rubens Pillar, vai ser descerrada na Praça do Centro Cultural, diante do velho educandário Oswaldo Aranha, uma placa de bronze com toda a letra do Canto Alegretense. Será agora, dia 7 de dezembro, e Os Fagundes (Bagre, Neto, Ernesto e eu) vão estar lá para cantar junto com o nosso povo. Uma canção em bronze, na praça pública da cidade homenageada, a nossa cidade! Podem encomendar o caixão...
VÍDEO: Neto Fagundes fala do legado do tio, parceiro de música e colega de Galpão Crioulo
30 anos de Galpão Crioulo
(Zero Hora, 5/5/2012)
Parece mentira, mas amanhã o Galpão Crioulo da RBS TV vai comemorar 30 anos! Me lembro como se fosse ontem quando a Ana Maria Dorneles me telefonou pedindo para eu dar um pulo na TV Gaúcha para uma gravação de um novo programa que a emissora iria lançar. Eu disse a ela que o Carlinhos Castillo já tinha me convidado para contar uma lenda num teste que ele iria fazer. Afinal, ele já era um veterano de TV, apresentando programas gauchescos em outras emissoras, mas ela disse que o teste que eu faria era como apresentador. Pedi tempo, porque antes queria falar com meu amigo Carlinhos, a fim de que ele não pensasse que eu o estava traindo. Telefonei para ele, que prontamente concordou. Então, me apresentei lá e, para surpresa minha, já no outro domingo o programa foi ao ar, com grande repercussão.
De lá para cá, quanta gente boa passou pelo Galpão Crioulo. Muitos já se foram, mas a lembrança deles permanecerá. Gente como Glaucus Saraiva, Barbosa Lessa, Teixeirinha, Gildo de Freitas, Jayme Caetano Braun, Cenair Maicá, César Passarinho e Rui Biriva. É pouco?
Amanhã, quando o Galpão Crioulo completar 30 anos em Venâncio Aires, na 12ª Fenachim, irão se apresentar os maiores nomes da atualidade do gauchismo. Nesta comemoração, o programa resgata um pouco da sua história por meio da interpretação de músicas que se destacaram ao longo dos 30 anos. Uma banda liderada pelo músico Luciana Maia está montada para o espetáculo. Serão arranjos para aproximadamente
31 canções, interpretadas por vários artistas especiais. Lá estarão: Berenice Azambuja, Daniel Torres, Dante Ledesma, Ernesto Fagundes, Gaúcho da Fronteira, João de A. Neto, Neto Fagundes, Pirisca Grecco, Raúl Quiroga, entre outros.
O Galpão Crioulo fez história. Andou por todo o Rio Grande, esteve no Mato Grosso, na Argentina e até em Paris. Pela nossa tela, passaram nomes como Mercedes Sosa, Sérgio Reis, Almir Sater e Jair Rodrigues (pilchado).
Equipes maravilhosas fizeram o Galpão Crioulo durante todos esses anos, começando com Alfredo Fedrizzi e Ana Dorneles, passando pelo grande Claro Gilberto, pela Florisa - nossa Isa -, até chegar aos três mosqueteiros de hoje: Rosana Orlandi, Fernando Alencastro e Gino Basso.
Tradicionalistas e amigos lamentam a morte de Nico Fagundes
Desencilhando o pingo
(Zero Hora, 12/5/2012)
Por longa que seja a tropeada, sempre há uma hora em que o tropeiro faz um alto e desencilha o pingo. Se for uma simples ronda, ele estende os arreios e fica contemplando o céu do pago, com estrelas nos olhos. Mas se a tropeada terminou, ele entrega a tropa e descansa, talvez pensando em outro gado que terá que tocar por diante. Se o tropeiro é velho, pode ser a sua última tropeada.
Eu estou com 77 anos. Tropeei a minha vida inteira, nos últimos 30 anos estive no comando do Galpão Crioulo, na RBS TV. Durante esse tempo convivi intimamente com os maiores artistas do gauchismo e com alguns convidados especiais. Foram momentos inesquecíveis, sem uma mágoa, sem um atrito, sem uma dor. Tive patrões magníficos, que sempre me prestigiaram, que sempre me deram muito mais do que eu pedi e certamente muito mais do que mereci. E nos últimos 10 anos esteve comigo um Capataz de tropa ideal, chamado Neto Fagundes, meu sobrinho, meu irmão mais moço e, sobretudo, meu amigo.
Mas o velho tropeiro que sou não vai parar. Feliz e realizado, vou cuidar de outras coisas, de outras tropeadas que não são menos importantes - recolher algum boizito que talvez ficou pelas estradas, matear em algum galpão hospitaleiro onde não pude pousar pela pressa de entregar o gado sem desconto.
Vocês sabem o que é tropear tanto tempo sem um problema? Só tive alegrias e conservei sempre limpo o lenço branco que carrego ao pescoço, minha bandeira e meu orgulho campeiro.
Gastaria uma noite inteira agradecendo aos meus patrões da RBS TV e aos meus companheiros de jornada, nos quais não encontrei - nunca - falhas de caráter, traições, mesquinharias. Gosto de pensar que, ao longo das estradas percorridas e que foram muitas, fiz amizades que vou conservar, porque essa é a maior riqueza que eu acumulei, Deus abençoe todos eles.
Mas agora está na hora de parar. Ainda tenho muita coisa para fazer, como cuidar da família ao lado da mulher que eu amo. Mas não pensem que não me verão mais de chapéu tapeado e lenço branco abanando: com meu irmão Bagre, com meus sobrinhos Neto, Ernesto e Paulinho, certamente me verão em outros rumos recortado contra o céu no topo de uma coxilha.
Passo o comando da tropa para o Neto Fagundes, que foi meu brilhante capataz durante 10 anos. Sem dúvida alguma, ele sabe o que fazer: conhece todas as estradas e a qualidade dos"bichos"com que lida. Desencilho feliz. Sempre usei pelego branco, a minha cor preferida.E assim que eu digo até a volta aos gaúchos e gaúchas de todas as querências.
Que o Deus crioulo que me abençoou sempre continue abençoando o querido Neto Fagundes.
Fechando a porteira
(Zero Hora, 26/5/2012)
"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria; tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora; tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar; tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz". Eclesiastes 3
Eu já tive tempo para tudo. Agora é tempo de parar.
Mas é tempo também de agradecer as pessoas maravilhosas que encontrei na Rádio Gaúcha, na Zero Hora e na RBS TV. Na Rádio Gaúcha, o meu grande amigo foi Flávio Alcaraz Gomes, uma pessoa incrível. Quando Darcy Fagundes adoeceu, eu sugeri ao Flávio que assumisse o programa Galpão do Nativismo o meu irmão Julio César Fagundes, que tinha experiência de rádio. Então, o Flávio me disse que era pena, porque ele já tinha o substituto do Mano Velho. Entristecido, perguntei-lhe quem era, e ele só disse uma palavra:"Tu". Foi assim que eu comecei na rádio onde estive muitos anos. No primeiro programa que fiz, recebi um telefonema. "Quem é?", perguntei. "Maurício", respondeu. Pensei que era gozação de algum amigo meu e mandei-o longe. "Que é isso, Nico? Sou eu mesmo e telefonei para te dar parabéns". Era mesmo o grande Maurício Sirotsky, sempre gentil e atento na grande empresa que comandava. Fiquei sob as ordens de Flávio Alcaraz Gomes, que riu muito quando eu disse que não podia fazer rádio porque não tinha "voz microfônica"... Depois, na Rádio Gaúcha, fui comandado por Domingos Martins Sobrinho, que me deu lições preciosas e sob cujas ordens eu fiquei anos, até adoecer.
Na TV, os meus grande amigos foram, primeiro, Alfredo Fedrizzi e Claro Gilberto, este louco de atar! Depois, a santíssima trindade do Galpão Crioulo, pessoas muito queridas que sempre me ajudaram e protegeram: Rosana Orlandi, Fernando Alencastro e Gino Basso. Acima deles, a queridíssima Alice Urbim. E os técnicos, os motoristas, que sempre me levaram ao coração do povo, cinegrafistas, como o Maguila, o Jorginho e o Caçapava, amigos que ficam para sempre.
Na Zero Hora, fui sempre prestigiado pelo Marcelo Rech, que elogiava o meu texto, e pela Cláudia Laitano. Naquele tempo, a gente redigia na redação. Agora, com a tecnologia do e-mail, tudo ficou mais simples. Obrigado, grande Marcelo.
Agora, na hora de fechar a porteira, a minha maior gratidão tem que ser para este público maravilhoso que sempre me prestigiou e, a rigor, continua me prestigiando. Carinho desses não tem preço. Muito, muito obrigado! Peço que transfiram todo esse carinho para o Neto Fagundes. Até (não sei quando), gaúchos e gaúchas de todas as querências!