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Quando surgiu para o grande público, com Triunfo (2009), Emicida cantava que "quem pensar pequenininho, tio, vai morrer sem". Ele falava sério: nos seis anos seguintes, o rapper botaria sua música para rodar em novelas, festivais de música nos EUA e trilha sonora de jogos de videogame, juntando tribos e palcos sem fazer distinção. Com Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, parece que ele deve ir ainda mais longe.
Sofar Sounds vira programa na Itapema
Uma das provas é virtual: lançado no começo de agosto, duas canções do álbum, Baiana (com Caetano Veloso) e Passarinhos (com Vanessa da Mata), foram parar no ranking Viral 50 Global do Spotify. A playlist elenca as músicas mais ouvidas e compartilhadas no mundo inteiro pelos usuários do serviço de streaming - feito raro entre artistas brasileiros.
A prova física virá mais adiante: Sobre Crianças..., que começou a ser composto em Los Angeles, teve a África como guia espiritual e foi finalizado no Brasil, é a primeira parceria do selo de Emicida, o Laboratório Fantasma, com a Sony Music - o que garantirá distribuição mundial e ampliação de sua presença no Exterior.
Às vésperas de embarcar para mais uma turnê internacional, Emicida falou por telefone sobre o espírito gregário que norteia sua carreira, a África e seu lugar na música popular brasileira. Como diz o título de seu primeiro trabalho, Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até que Eu Cheguei Longe.
MAMA ÁFRICA
Com o patrocínio do edital Natura Musical, Emicida viajou para a África, onde passou 20 dias entre Cabo Verde e Angola. O contato com a cultura e os músicos locais o fez mudar os planos do disco que já tinha rascunhado nos EUA. Mas o impacto de conhecer o continente foi para além da música.
- A África é um milhão de coisas, e só aparece o que é pejorativo. Eu queria fazer um disco sobre esse um milhão de coisas que a África é e pode ser, que os pretos são e podem ser. Pra mim, o tema final do disco é liberdade, força, beleza, intelectualidade, resistência. É isso que a África representa pra mim, porque um continente que sofreu tanto estupro, tanta pilhagem, tanto sequestro e continua com uma força daquela e um sorriso no rosto é uma representação forte de resistência a esse abismo que
a humanidade está pulando há muito tempo.
CAETANO E OUTRAS PARCERIAS
Ao longo de sua carreira, Emicida engatou parcerias com uma dezena de artistas de todos os gêneros - da roqueira baiana Pitty ao funkeiro paulista MC Guimê passando pelos bambas do samba Zeca Pagodinho e Martinho da Vila. Em Sobre Crianças..., recebeu Caetano Veloso e Vanessa da Mata.
- Caetano é um artista fantástico, tenho muito orgulho e uma alegria imensa de estar perto dele. É um cara que me inspira a fazer música, sabe? Ele fala de uma maneira inteligente, compõe de maneira incrível, me inspira a ser mais livre, a ser mais eu. A Vanessa é fantástica, conheço ela há muito tempo, nos tornamos próximos nos últimos anos, e aí veio a parceria. Quando estava ouvindo o disco com um poeta de São Paulo, ele me disse: "A coisa mais mágica desse disco é que a sua voz dá voz a outras vozes". Daí que acho que a minha força está no encontro desses olhares, de pessoas que reconhecem que foram lembradas nesse tipo de poesia.
LUGAR NA MÚSICA
Emicida trabalha o rap como um grande caldeirão, em que mistura todo o tipo de gênero. Para ele, não existem fronteiras musicais ou palcos exclusivos.
- A música brasileira tem essa coisa de assimilar. É só ficar com o coração aberto para se conectar. E isso que me dá o norte para fazer música. Meus ídolos, Jorge Ben, Caetano, Gil, Jovelina Pérola Negra, Cartola, Zé Keti, todos foram artistas que circularam por vários universos. O (fato de o) Zé Keti sair da favela e ir pra zona sul do Rio salvou o samba em várias instâncias na década de 1970. Então não vejo isso de repartir por espaço, música de favela ou de não sei onde, música de preto, música de branco. Vivemos em um país muito racista, mas minha forma de atacar isso é construir essa união.
CARREIRA INTERNACIONAL
Há pelo menos quatro anos que Emicida roda o mundo tocando em palcos latinos, norte-americanos e europeus. Mas se arriscou pouco em outros idiomas, o que pretende mudar o mais breve possível.
- Tenho ambição de estudar outros idiomas e poder gravar em espanhol, por exemplo, meio Julio Iglesias (risos). Quero me conectar com a América Latina. Então por que não gravar em espanhol ou em inglês, vamos direto pros EUA e Inglaterra? Ou em francês? Todos eles estão na África, que é um lugar onde quero me fundir. Quero sair dessa zona de conforto, não me dou com isso, minha criatividade vem do conflito.
OCUPANDO ESPAÇOS
Sobre Crianças... vai ser lançado pela Sony Music, primeira parceria entre Emicida e uma grande gravadora. O movimento, que poderia ser visto com desconfiança pelo meio do rap, é encarado como uma passo natural pelo músico.
- Não acho que tenha muitos espaços mais para ocupar no mercado independente que a gente não tenha ocupado. Independentes, fomos ao Coachella, o que é uma parada que dá orgulho, mas me fala da responsabilidade de ir além. Nossa música está pronta pra conversar com o globo e como vamos chegar nesse planeta inteiro? O Jay-Z faz isso, o Puff Daddy faz isso, os caras fazem a parada deles, com a propriedade e a verdade da rua e, quando chega o momento de distribuir, fazem parceria com gravadora grande.
Emicida faz show no dia 12 de novembro no Opinião, em Porto Alegre. Mais informações, no site da casa.