O músico e pesquisador Arthur de Faria preparou uma ista de 40 músicas para acompanhar a leitura de A Noite do Meu Bem, livro em que Ruy Castro conta a história do samba-canção. Dê play e leia os comentários de Arthur para cada faixa:
1928 - Ai, Iôiô (Henrique Vogeler / Luiz Peixoto / Marques Porto) - Aracy Côrtes - O primeirão. A primeira vez que desaceleraram o samba, ainda meio com cara de maxixe, misturando-o com a tradição da canção brasileira que vinha de lá da modinha.
1933 - Três Apitos (Noel Rosa) - Aracy de Almeida - inédito até 1951, quando foi gravado pela primeira vez pela velha amiga de Noel, Aracy de Almeida, que então estava trazendo de volta o cara, que tava completamente esquecido.
Ruy Castro investiga as origens e o auge do samba-canção em novo livro
1938 - Pra Que Mentir? (Noel Rosa / Vadico) - Silvio Caldas - Noel morreu em 1937. Essa foi uma das tantas que ele morreu sem ver gravadas. Uma das 11 obras-primas que ele escreveu para as melodias de seu melhor parceiro, Vadico. Grande interpretação de Silvio Caldas, que a traria de volta nos anos 1950. Caetano também a gravou lindamente.
1939 - No Rancho Fundo (Ary Barroso / Lamartine Babo) - Silvio Caldas - Ary e Lamartine é um desaforo de parceria tipo Chico e Tom. E com Silvio Caldas no auge, então... Essa é tão boa que resistiu até a Chitãozinho & Xororó.
1942 - Ave Maria do Morro (Herivelto Martins) - Trio de Ouro - Essa aí só o João Gilberto pra dar uma dignidade. Mas como não estamos por essa, vai a gravação original, do casal 20 do kitsch, Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, no Trio de Ouro.
1944 - Noturno em Tempo de Samba (Custódio Mesquita / Evaldo Ruy) - Silvio Caldas - A levada aqui ainda é meio rápida, e o arranjo, um tanto épico, mas o mood da composição é inequivocamente samba canção. E que harmonia prafrentex, ehehee.
1945 - Dora (Dorival Caymmi) - Dorival Caymmi, 1960 - Obra-prima em letra, música, interpretação, tudo. Se a gente resumisse o Samba-Canção em cinco caras, seriam Ary, Caymmi, Noel, Cartola e Lupicínio. Mas o mais elegante e charmoso a gente nem precisa dizer quem é, né?
1945 - Doce Veneno (Valzinho) - Emilinha Borba, 1948 - Valzinho é um daqueles caras que só tiveram seu valor reconhecido muitos anos antes de morrer. A gravação original dessa é de 1945, e não é grande coisa. Mas essa versão da Emilinha é uma belezura.
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1946 - Saia do Caminho (Custódio Mesquita / Evaldo Ruy) - Aracy de Almeida - Custódio era o único compositor que poderia empatar com Caymmi e Ary Barroso em termos de sofisticação. Morreu moço, antes mesmo de ouvir essa maravilha gravada. E a letra é um primor, do grande Evaldo Ruy, outro que se foi logo. Aqui, acho, o piano é do próprio Custódio, que tinha um estilo muito dele de tocar.
1946 - Copacabana (Braguinha / Alberto Ribeiro) - Dick Farney, com arranjo de Radamés Gnattali - Aqui já é a Bossa Nova, 12 anos antes da Bossa Nova, composta e arranjada por três veteraníssimos dos anos 1930, mas interpretada pelo então tinindo de novo Dick.
1947 - Marina (Caymmi) - Dick Farney - No mesmo ano, o magistral Francisco Alves gravou na melhor arte da tradição. Mas aqui era a modernidade arrombando a porta. Só voz e piano, pra gravadora economizar no novato. Precisa dizer qual fez mais sucesso?
1947 - Caminhemos (Herivelto Martins) - Francisco Alves - Talvez a obra-prima de Herivelto, numa nada menos que magistral interpretação do meu cantor preferido pré-Bossa (essa lista é de quem, heim?)
1946 - Mensagem (Aldo Cabral / Cicero Nunes) - Isaurinha Garcia - Essa é uma cafonice. Mas uma deliciosa cafonice, fala a verdade...
1948 - Nova Ilusão (Zé Menezes / Luis Bittencourt) - Os Cariocas - nada menos que a estreia d´Os Cariocas em disco, numa melodia e harmonia magistrais de Zé Menezes, o eterno guitarrista de Radamés Gnattali
1948 - Esses Moços (Lupicínio Rodrigues) - Francisco Alves - A definitiva consagração de Lupi. Mesmo que aqui o andamento ainda seja meio rápido pra o que a canção poderia ainda oferecer, ralentada. Mas as escovinhas na bateria já dão um clima de novidade.
1948 - A Saudade Mata a Gente (Braguinha / Antonio Almeida) - Dick Farney - Pombas, Dick, vai ser elegante assim lá na... Uma toada quase caipira, que virou outra coisa.
1948 - Chuvas de Verão (Fernando Lobo) - Francisco Alves - A obra-prima do pai do Edu. Uma das maiores gravações do Chico Viola maduro, com seus erres inconfundíveis e tão copiados.
1950 - Amargura (Radamés Gnattali - Alberto Ribeiro) - Lucio Alves - Radamés era moderníssimo desde os anos 1930. Lúcio começou como cantor mirim. O primeiro teve aqui seu único hit em vida. O segundo começava aqui a mostrar o que era um cantor moderno no nível de Dick Farney, sem ser o Dick.
1950 - Canção de Amor (Chocolate / Elano de Paulo) - Elizeth Cardoso - Elizeth cantara mais e melhores sambas canção. Mas esse foi seu primeiro sucesso, e a acompanhou pela vida toda.
1950 - Errei, Sim (Ataulfo Alves) - Dalva de Oliveira - Vibrato e força sempre foi com ela. Mas tinha uma legião de admiradores. Ainda tem. Ouça essa aí com a Elizeth já coroa e entenda o que é jeito x força.
1951 - Vingança (Lupicínio Rodrigues) - Linda Batista - Não foi a primeira gravação, mas foi a que, literalmente matou. Matou muita gente, que se suicidou ouvindo o disco.
1951 - Palhaço (Nelson Cavaquinho / Oswaldo Martins / Washington Fernandes) - Dalva de Oliveira - Nelson, já coroa, entrando em cena. Gênio absoluto.
1951 - Sábado em Copacabana (Caymmi / Carlos Guinle) - Sylvinha Telles e Barney Kessel - Essa aqui foi lançada pelo Lucio Alves, mas não dava pra perder essa versão, com os gringos tentando misturar jazz e samba-canção e NÃO fazendo Bossa Nova.
1953 - Risque (Ary Barroso) - Linda Batista e Trio Surdina - Também não é primeira versão, mas o acompanhamento escandaloso moderno do Trio Surdina (Fafá Lemos no violino, Chiquinho do Acordeom e o violão de Garoto - mais, aqui, baixo e bateria) é um espanto.
1953 - Duas Contas (Garoto) - Trio Surdina - Nada era mais moderno que o Trio Surdina em 1953. Puta sacanagem o Garoto morrer logo depois.
1953 - João Valentão (Caymmi) - Caymmi - Gênio. Gênio. Gênio. Gênio.
1953 - Faz Uma Semana (Tom Jobim / Juca Stocler) - Ernani Filho - Falando em gênio, foi em 1953 que o compositor Jobim começou a dar as caras, ainda quilômetros de qualquer novidade em sua bossa.
1953 - Você Esteve Com Meu Bem? (João Gilberto) - Marisa Gata Mansa - Tão distante estava Jobim da busca da batida perfeita quanto o espírito santo da Bossa Nova, numa raríssima composição sua. Sim, é o João Gilberto.
1953 - Ronda (Paulo Vanzolini) - Inezita Barroso - Samba canção paulista, uma novidade. Inezita, até então, e também depois, cantando algo tão urbano: outra.
1953 - Vida de Bailarina (Chocolate / Americo Seixas) - Ângela Maria - Angela pintando na área, estalando de nova, sem exageros, precisa.
1954 - Tereza da Praia (Tom Jobim / Billy Blanco) - Lucio Alves e Dick Farney - Os dois cantores mais cool do planeta, esnobando chiqueza, elegância e rubatos. Na canção que Tom escreveu pra sua própria Tereza da praia. Ele que levou.
1955 - Dó-ré-mi (Fernando César) - Doris Monteiro- Se houve alguma cantora mais gata que a Doris, esconderam. E, na voz, uma pequena revolução. Cadê o vibrato nas cantoras? Se foi, gente. Começou aqui (o filme é de 1957, a gravação original dela, de dois anos antes).
1955 - Chove lá Fora (Tito Madi) - Tito Madi - Só as notas da melodia em "foooo-ra" já valiam por uma aula de modernidade. E Tito ali, naquela elegância.
1956 - Foi a Noite (Tom Jobim / Newton Mendonça) - Sylvia Telles - Jobim, Newton Mendonça, Sylvinha Telles... tá quase. Mais dois anos e esse mundo acaba.
1957 - Gauchinha Bem Querer (Tito Madi) - Tito Madi - Se o Tito Madi fez uma média linda com a gauchada num lindo samba canção (ainda que de letra pueril), não sou eu que vou cortar esse barato.
1957 - Ouça (Maysa) - Maysa - A gravação original é deste ano, o video este, de 1958. Mas é que Maysa sempre foi também pra ser vista.
1957 - A Volta do Boêmio (Adelino Moreira) - Nelson Gonçalves - Algo aqui se rompe. Começa a explodir a carreira de Nelson, como o mais recente (então) cantor antigo de grande popularidade. Num samba-canção que, em melodia, letra e arranjo, poderia ser de 20 anos antes, absolutamente distante de qualquer modernidade.
1958 - Meu Mundo Caiu (Maysa) - Maysa - O auge do samba-canção de desgraceira... da novíssima geração. Sim, mesmo com essa voz de travesseiro gasto, Maysa ERA novinha.
1958 - Solidão (Dolores Duran) - Dolores Duran - Outra novinha. Que, até então, era conhecida como extraordinária cantora. Aqui começava a mostrar seus talentos como compositora. "A Noite de Meu Bem" é do ano seguinte. Morreria aos 27.
1958 - Eu Não Existo Sem Você (Tom / Vinícius) - Elizeth Cardoso, com João Gilberto no violão - É deste disco que saiu "Chega de Saudade". Estava ali a semente da leveza que mudaria o foco da música mais sofisticada feita no Brasil. Deixaria logo de ser o samba-canção, pra brilhar a Bossa Nova.