
Quando o músico e professor Márcio de Souza viu pela primeira vez o nome de Octavio Dutra (1884 – 1937), em 1995, este não passava de um pequeno verbete em uma enciclopédia musical, no qual era classificado como um violonista de Porto Alegre. Mais de 20 anos depois, o passado veio à tona: Dutra, na verdade, foi um dos mais importantes personagens da cena musical da cidade no início do século 20, compositor de sucessos populares e arranjador de orquestras, além de um virtuose do bandolim e – sim, a enciclopédia não mentia – um competente instrumentista ao violão.
A história e a obra desse pioneiro, que há algumas décadas era um mistério até para quem pesquisa sobre a música gaúcha, agora estão facilmente acessíveis ao público com a biografia Espia Só... A Trajetória Musical de Octavio Dutra e o songbook Espia Só... As Músicas de Octavio Dutra, ambos assinados por Márcio de Souza. Os livros serão lançados nesta segunda-feira, às 19h, no Centro Histórico-Cultural Santa Casa (Independência, 75), com sessão de autógrafos e bate-papo do autor com o crítico musical Juarez Fonseca e o músico e pesquisador Arthur de Faria sobre a herança musical do homenageado.
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Apesar de ter feito fama compondo temas como Celina, valsa que chegou a vender 40 mil discos nos anos 1910, época em que as tiragens nacionais não passavam de 500 unidades, Dutra permaneceu algumas décadas esquecido depois de sua morte, em 1937, aos 52 anos.
– Ele compôs músicas em gêneros como polca, valsa e mazurca, que alguns anos depois seriam considerados ultrapassados, pois a estética musical do Brasil mudou. Compositores como Pixinguinha, por exemplo, viveram por mais tempo e conseguiram renovar seu repertório. Além disso, estavam em uma área mais central do Brasil, fazendo mais contatos – diz Souza.
O songbook apresenta o que seriam os 15 trabalhos mais importantes de Dutra, oferecendo uma amostra da variedade de sua música, com comentários e um CD. Violonista, Souza já havia gravado anterirormente o CD Espia só... O Violão de Octavio Dutra, em 2003. Com a biografia, ele busca demonstrar o papel de mediador que o compositor exerceu na cena musical porto-alegrense das primeiras décadas do século 20, trabalho ao qual Souza já havia se dedicado em sua tese de doutorado em História Cultural, pela PUCRS, concluída em 2010.
– Dutra circulava por toda Porto Alegre, desde as elites às classes menos favorecidas, dos blocos de Carnaval ao Theatro São Pedro, da boêmia às gravadoras de discos. Era alguém que colocava esses diferentes espaços em diálogo, levando informação de um lado a outro, e também agrupando suas diferentes características em sua própria obra – explica Souza.
Com pouco mais de cem páginas recheadas de fotos e reproduções de folhetos e partituras, a biografia acaba passando com muita rapidez pelas diferentes fases da vida do músico. O autor também evitou se aprofundar em aspectos pessoais, o que colabora para que o leitor custe a encontrar empatia com o biografado. Trata-se de um volume que documenta as diferentes facetas do músico, mas que encontra dificuldades em captar a atenção de quem já não está de antemão interessado no personagem.
Os lançamentos são o ponto alto de um trabalho de resgate que Souza e mais pesquisadores têm feito desde os anos 1990, gravando e publicando trabalhos sobre Dutra. Em 2012, o compositor já havia sido tema do documentário Espia Só... Descobrindo a Música de Octavio Dutra, com direção de Saturnino Rocha e produção de Carlos Peralta – o mesmo produtor dos livros agora publicados.– Há 20 anos, batemos na mesma tecla. Agora, o Octavio Dutra começa a ser mais percebido – avalia Souza.
Compositor popular
Apesar de ter estudado em conservatório e ter feito arranjos para obras eruditas, Octavio Dutra ficou conhecido por seu vínculo com a música popular. Os foliões aguardavam com ansiedade pelas composições que fazia para blocos carnavalescos – algumas compostas em meio às festas, como respostas às provocações de algum bloco rival. Já entre suas gravações, o tango brasileiro Espia Só... e a valsa Celina foram alguns de seus grandes destaques. A última, registrada nos anos 1910, chegou a vender 40 mil unidades.
– A morte do Dutra, em 1937, encerrou uma era musical de Porto Alegre. Era um tempo de compositores conhecidos que influíam na música da cidade. Foi uma cena muito própria, que se desmanchou com a tentativa do Estado Novo de unificar o Brasil a partir do Rio de Janeiro, definindo lá que música brasileira seria sinônimo de música carioca. Isso minou com a cena de muitos Estados – opina o pesquisador e músico Arthur de Faria.
Terror dos facões
Grupo musical coordenando por Octavio Dutra, o Terror dos Facões impressionava o público pelo virtuosismo de suas apresentações, mas foi além das performances ao vivo. Na incipiente indústria fonográfica brasileira, a banda também tinha destaque. Nas primeiras décadas do século 20, tanto a Casa A Electrica como a Casa Edison abriram locais de gravação em Porto Alegre. A biografia de Márcio de Souza conta que, em 1915, Dutra ''causou espanto" ao registrar de uma só vez 30 composições na Biblioteca Nacional, no Rio, para resguardar direitos de gravação. O jornal A Noite noticiou o episódio dias depois sob o título de "Interessante Recorde".
Mesmo gravados em Porto Alegre, os discos de Dutra circulavam por outras regiões, fazendo sua música ter maior perenidade em alguns círculos musicais.
– Ele gravou muito em uma época em que pouca gente gravava. Isso contribuiu para que, ao menos no meio musical do choro, nunca fosse esquecido – afirma Arthur de Faria.
Moderno e regional
Para o biógrafo Márcio de Souza, a cor local na obra de Octavio Dutra émais perceptível em suas temáticas do que na sonoridade:
– Ele andou muito conforme a modernidade brasileira da época. Não estava sequer pensando em regionalismo, que é uma preocupação que vai aparecer na música a partir dos anos 1940. Foi um músico que compôs muito bem o choro carioca. Já as temáticas das canções tinham uma relação mais próxima com Porto Alegre e seu contexto.
Além de algumas operetas que abordam o cotidiano da época, o músico expunha suas opiniões políticas e tratava de episódios históricos com suas composições. Algumas delas, por exemplo, foram dedicadas a nomes como Carlos Barbosa, Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha. Já a valsa Pax é interpretada por Souza como uma referência ao fim da I Guerra Mundial ou à Revolução de 1923.