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Literatura

Flip começa com celebrações da poesia

Palestra inaugural foi seguida pela exibição do documentário sobre Freitas Filho

Carlos André Moreira

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Documentário sobre Freitas Filho foi exibido no evento

Ao escolher Ana Cristina César como a homenageada deste ano, a Flip já havia anunciado a intenção de fazer uma celebração da poesia. Uma intenção corporificada na mesa de abertura do evento, realizada na noite desta quarta-feira, com o poeta Eucanaã Ferraz mediando uma mesa entre o poeta Armando Freitas Filho e o fotógrafo e diretor Walter Carvalho.

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Embora Ana C. fosse uma presença inevitável, dada a relação de amizade e de admiração mútua que ela manteve com Armando Freitas Filho teve com ela, o assunto mais frequente ao longo da mesa foi a relação de cumplicidade estabelecida entre Freitas Filho e Carvalho – o diretor passou sete anos filmando depoimentos e o cotidiano do poeta, para o documentário Manter a linha da cordilheira sem o desmaio da planície, exibido na sequência do debate.Eucanaã Ferraz abriu a conversa com o que chamou de uma "pergunta-espelho", perguntando o que havia de poesia no cinema de Carvalho e o que havia de cinema na literatura de Freitas Filho.

O segundo respondeu que sua ligação com o cinema está na admiração, quase idolatria pelo cinema de Goddard, que considera realmente poemas em imagens.

Goddard é poesia. Só ele tem a surpresa da poesia.

Já Carvalho comentou que a ideia de fazer o filme nasceu de seu encanto com uma imagem poética lida em um dos livros de Freitas Filho.

– O cinema só existe porque existem as imagens. Foi esse o impulso que me levou a fazer o filme com o Armando. Até porque eu sou da Paraíba. E na Paraíba quando alguém faz alguma coisa genial o pessoal sempre diz "é um poeta". Nunca vi ninguém dizer "é um cineasta" – comentou, bem-humorado.

Freitas Filho continuou referindo-se ao caráter da poesia de buscar a forma de expressão nova. Num eco, embora não diretamente referido, do "make it new" que Ezra Pound preconizava:

– Cada gênero de arte tem um mesmo desafio: descobrir aquilo que nunca ninguém disse aquela maneira.Os dois passaram depois a falar sobre o processo de produção do documentário que Carvalho passou sete anos produzindo sob Freitas Filho e sua visão da poesia. De acordo com o diretor, um dos motivos que levaram à execução do filme foi a curiosidade a respeito do poeta.

– Eu queria saber como vivem os poetas. Se vocês pegam ônibus, vão de táxi, vão ao supermercado. Se abrem a janela para deixar a inspiração entrar. E quando eu terminei o filme cheguei á conclusão que eu queria continuar filmando o Armando para sempre. Ele deu uma entrevista esses dias para um jornal em que a última frase falava do "cabide ausente de uma camisa ausente". Isso não é poesia, é cinema, eu fiquei louco para filmar esse cabide.

Provocado por Eucanaã se aceitaria continuar sendo filmado por tanto tempo, Freitas Filho concordou:

– Claro, ué. Nunca ninguém olhou tanto para mim.

Ao ser provocado pelo mediador sobre se concordava com a afirmação de que a "poesia é a vida passada a limpo", Freitas Filho discordou:

– Não. Entendo a poesia, a minha poesia, pelo menos, como algo que toca a vida por inteiro, a vida toda, que toca também as coisas monstruosas. Um Temer, por exemplo – complementou, provocando uma salva prolongada de palmas.

Na última parte da mesa, a homenageada Ana Cristina César finalmente veio á tona. Carvalho foi o diretor de fotografia de um curta-metragem dirigido por João Moreira Salles em 1996 sobre Ana Cristina César, "Poesia é uma ou duas linhas e atrás uma imensa paisagem". Carvalho recordou com entusiasmo a produção do filme, que ele considera "a melhor coisa que já fiz na vida".

– O pai da Ana Cristina levou até o João uma sacola de supermercado com tudo o que ele tinha guardado da Ana: livros, rolos de filme, papéis, fotos, e a gente foi até a produtora, colocou tudo aquilo em cima de uma mesa e passamos duas tardes tentando encontrar as conexões entre aqueles objetos e a poeta Ana Cristina César – recordou.

Já Armando Freitas Filho, amigo de Ana C. e organizador de quatro livros póstumos da autora recordou a relação intensa que teve com a amiga, inquiridora e extremamente inteligente.

– Conheci a Ana em 1973, ela tinha 20 anos, eu sou 12 anos mais velho do que ela. Me impressionou de cara a maneira como ela provocava, em todos os sentidos, o interlocutor. Ela fazia você falar, era uma menina que ouvia muito. E por isso, ao longo dos anos em que fomos amigos, a gente brigou muito. Discutimos muito, tudo era tema de amplo debate: a poesia, o verso livre, se é mesmo livre...Freitas continuou relembrando a tensão de Ana enquanto seu livro A teus pés não era publicado pela Brasiliense, que estava com os originais e ficou com eles seis meses em uma lista de espera- Ela arrancava os cabelos dizendo "isso não vai sair nunca". Quem mudou essa situação foi um amigo dela, o Caio Fernando Abreu, que convenceu a editora a publicar logo, e na escreveu um lindo texto na quarta capa. – contou.

A palestra inaugural foi seguida pela exibição do documentário sobre Freitas Filho, no qual o poeta apresenta não apenas sua poesia mas sua visão da arte, suas memórias da leitura de Carlos Drummond de Andrade, da descoberta do cinema de Goddard.

O filme também apresenta uma longa conversa entre Freitas Filho e Ferreira Goulart sobre poesia. E, em sua seção final, um pouco como a mesa que havia acabado de ser realizada, aborda outra vez a amizade de Freitas Filho com Ana Cristina César. Ele conta com detalhes a última conversa que teve com Ana, na qual ela pediu que ele fosse a seu apartamento e ele não foi pôde ir por estar doente. Naquela mesmo dia, Ana cometeu suicídio pulando da janela de seu apartamento.

– A morte dela foi um impacto tão grande que destruiu a natureza – diz Freitas Filho no filme.

A programação da Flip segue tratando de Ana Cristina César nesta quinta-feira, com um encontro sobre sua poesia às 10h.

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