
Depois que Eduardo Coutinho levou o documentário tradicional ao limite com seus filmes "de entrevista" radicais (Santo forte, sobretudo), o cinema brasileiro de não ficção ultrapassou a fronteira do real, aventurando-se em exercícios marcados pelo hibridismo. Vimos pessoas reencenando suas próprias vidas (em O céu sobre os ombros), dramas construídos com imagens documentais (Viajo porque preciso, volto porque te amo) e até realidades recriadas a partir de preceitos da ficção científica (Branco sai, preto fica), entre outras propostas.
Para realizar A morte de J.P. Cuenca, que estreia nesta quinta-feira no CineBancários, em Porto Alegre, o escritor carioca João Paulo Cuenca se inspirou em um episódio de seu passado – o "roubo" de sua identidade –, imaginando uma trama ficcional a partir de seus desdobramentos. Tudo escrito, dirigido e protagonizado por ele – que encarna... ele mesmo.
Cuenca descobre que alguém se apropriou de seu nome quando encontra um registro de que teria morrido. Para entender o que se passou e quem é o morto identificado como ele, vai atrás da mulher que testemunhou o óbito. Dois aspectos chamam a atenção positivamente nesse primeiro ato: a morte simbólica do homem é apresentada como espelho da perda da identidade do Rio de Janeiro, cidade cujo desenho urbano está em transformação (o sujeito que morreu vivia nas ruínas de um prédio invadido); e a autoironia que marca sequências como a do encontro do autor com seu editor – quando ele conta o que ocorreu e recebe como resposta um "Você não pensa em escrever um livro sobre isso, né? Seria cafona" (Cuenca escreveu esse livro, que tem como título Descobri que estava morto e que forma com o filme um díptico).
As imagens dessaturadas do fotógrafo Pedro Urano dão uma rusticidade à estética do filme, que se revela igualmente sofisticado na criação do suspense em torno do ocorrido. As falsas entrevistas que Cuenca realiza com detetives e com possíveis testemunhas, braço "documental" de A morte de J.P. Cuenca, têm interpretações desiguais, mas os ótimos diálogos enriquecem a fruição, garantindo a atenção do espectador. O problema é o que acontece no ato final.
Lá pelas tantas, Cuenca encontra uma enigmática garota com a qual o público já estava familiarizado – e com quem ele, até então, não havia interagido. O que ela representa? Melhor não antecipar aqui, mas o fato é que a resolução da trama, que se dá a partir da sua presença, tem algo de capenga. A relação entre o Cuenca verdadeiro e o Cuenca morto é mais próxima do que parece, digamos assim. O problema é que, nessa grande reflexão sobre a perda (troca?) de identidade, falta foco ao escritor-diretor. Nem tudo o que ele pretende dizer se traduz objetivamente na tela. Até pelo bom começo, o que fica, ao fim da sessão, é uma certa frustração.
A MORTE DE J.P. CUENCA
De João Paulo Cuenca
Drama, Brasil, 2015, 90min.
Estreia nesta quinta no CineBancários, em Porto Alegre.
Cotação: 3 estrelas (de 5).