
Aos 68 anos, César Aira é quase um padrinho das editoras independentes argentinas, que geralmente estreiam com alguma de suas breves novelas no catálogo. Nos Estados Unidos, também tem ares de autor de culto, com turnês de autógrafos e resenhas de gente que extrapola o mundo literário, como a escritora e cantora Patti Smith. Já no Brasil, ainda são poucos os seus títulos traduzidos.
– Fico com a impressão de que os argentinos lemos mais os autores brasileiros do que vocês nos leem – compara o escritor.
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A falta de livros de Aira no Brasil é amenizada agora com o lançamento de Os Fantasmas, novela que a Rocco acaba de publicar – 27 anos depois da edição original. Na trama, uma família de origem chilena convive com espectros em um prédio em construção de Buenos Aires. Como a maior parte dos textos de Aira, ficção fantástica e realismo se fundem, ganhando às vezes tom de ensaio, mas também guardando humor e mistério.
Nesta entrevista, realizada por e-mail, o escritor fala sobre sua prosa experimental, opina sobre a relação literária entre Brasil e Argentina e critica o que chama de "literatura do eu". Além disso, conta como foi seu "curioso" primeiro encontro com o gaúcho João Gilberto Noll (1946 – 2017), morto em março, romancista que hoje compara com Guimarães Rosa, Witold Gombrowicz e Jorge Luis Borges.
Sua lista de títulos publicados cresce rapidamente. Atualmente, qual é o número de livros lançados pelo senhor?
Deve estar por volta dos cem. Mas muitos são folhetos, de pouquíssimas páginas. Há anos é raro que um livro meu chegue às cem páginas. São muitos títulos, mas pouco volume. Acho que minhas Obras Completas caberiam em dois ou três romances de Stephen King.
Os Fantasmas foi lançado em 1990 e tem pouco mais de cem páginas, mais curto do que suas novelas anteriores. O senhor o considera como seu primeiro livro no estilo em que ficou conhecido como escritor?
Depois escrevi ainda mais curtos. Quando jovem, tentava escrever novelas que parecessem novelas de verdade. Com o tempo, fui me libertando das superstições dos gêneros, e encontrei a forma e o tamanho mais adequados para minha imaginação. Agora o que escrevo é uma mistura de relato, poesia e ensaio.
O senhor já afirmou que a ideia inicial de Os Fantasmas era tratar do quanto estamos dispostos a pagar por algo – no caso da personagem Patri, com a própria vida. Mas também trata de como as pessoas se relacionam entre si e com o espaço em uma metrópole. Estes temas foram uma escolha consciente?
Para escrever, preciso de uma ideia inicial, que sugira um problema, uma intriga, um paradoxo – neste caso, "quanto estamos dispostos a pagar". Mas, no desenvolvimento dessa ideia entra minha experiência, minhas lembranças e meus sentimentos. Nessa novela, entraram minhas experiências com imigrantes pobres na cidade grande, as recordações das mulheres na minha casa, ouvidas na infância, sobre o valor dos homens... e muitas outras coisas.
Quando esteve em Porto Alegre, em 2012, para uma edição da FestiPoa Literária, o senhor manifestou desejo de encontrar pessoalmente João Gilberto Noll, autor que morreu em março deste ano. Qual é sua opinião sobre a obra dele?
Ocorreu uma coisa curiosa comigo. Conheci Noll em um encontro de escritores em Curitiba. Pareceu-me um homem tão cinza, tão insípido, que pensei que sua obra seria igualmente cinza e insípida. Então não cheguei a falar com ele, nada mais do que um cumprimento distraído. Anos depois, li Harmada – e só o li porque alguém o deixou esquecido em um quarto de hotel –, e foi um deslumbramento. O mesmo deslumbramento que tive ao ler Guimarães Rosa, Gombrowicz, Lautréamont ou, em minha adolescência, Borges. Considero Noll grande como eles.
Tenho a impressão de que há mais títulos seus editados em inglês do que em português. Isso é verdadeiro? Como encara o intercâmbio literário entre Argentina e Brasil. Poderia ser mais intenso?
De fato, ao inglês foram traduzidos uns 20 livros, e seguem traduzindo, de dois a três por ano. Ao português, não creio que traduziram mas de quatro ou cinco. Fico com a impressão de que os argentinos lemos mais os autores brasileiros do que vocês nos leem.
O senhor encara sua criação literária como fazer poético, tendo um cuidado muito grande com a linguagem. Por conta disso, não há receio ao ser traduzido, reescrito em outro idioma?
Uma vez que um livro meu é publicado, eu o esqueço, não me ocupo mais com ele, e não me importam as reedições ou traduções ou adaptações que façam com ele – de tudo isso se ocupa meu agente, bendito seja. É meu modo de seguir adiante, renovar-me e reinventar-me a cada vez, como se cada livro fosse o primeiro. Quando os tradutores me consultam com suas dúvidas, já esqueci até do que tratava o livro, e me dá preguiça de buscar um exemplar e encontrar a passagem problemática, então digo a eles para serem criativos. O mal entendido pode ser enriquecedor.
O senhor escreve textos curtos e em terceira pessoa. Nos últimos anos, séries longas em primeira pessoa de Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard têm conquistado um grande público leitor e também o respeito da crítica. O que pensa de trabalhos como estes?
Não gosto dessa "literatura do eu" que agora está na moda. Não li os autores que você menciona, mas os que li, nas três primeiras páginas, me dão uma impressão de monotonia ou déja-vu. Os que escrevem essa "literatura do eu" pertencem a essa classe média urbana uniformizada em todo o mundo, de vidas convencionais, sem maiores acidentes que os de suas medíocres psicologias. Além disso, é preciso ter uma autoestima muito elevada, maior do que a minha pelo menos, para acreditar que seus namoros e porres são tão interessantes.