
Aqueles médicos eram médicos europeus, médicos espanhóis, médicos de um dos mais poderosos clubes do mundo, o Barcelona, e falavam com muita segurança e até alguma empáfia. Em contraponto a eles, o médico brasileiro, José Luiz Runco, surgia com aparência deplorável: um pouco desleixado, a barriga pendente para fora da calça do agasalho, os olhos semicerrados, uma aragem blasé de quem sentia preguiça de viver. Os médicos europeus diziam que não, que Ronaldo e Rivaldo não conseguiriam jogar a Copa de 2002 devido às lesões que haviam sofrido pouco tempo antes; o médico brasileiro dizia que sim, que os dois jogariam e que jogariam bem. Estavam, uns e outro, a uma dúzia de metros de distância, na pista atlética do estádio (estádio, não campo, um luxo) de treino do Barcelona. Era o primeiro dia de trabalho da Seleção Brasileira na preparação para o Mundial.
Você Felipão: personalidades do RS escalam a Seleção Brasileira
Quando os jornalistas brasileiros ouviram o depoimento firme dos empertigados médicos europeus e a resposta quase casual do brasileiro, se assustaram: Luiz Felipe, o técnico da Seleção, cometera uma temeridade. Havia desconvocado o melhor jogador do país, Romário, para apostar naqueles dois "bichados", como se diz na linguagem crua do futebol, além de outro, Ronaldinho, que vinha de uma temporada de inatividade por conta da disputa judicial entre ele e o seu ex-clube, o Grêmio. Romário ficara chorando no Brasil e Luiz Felipe, suspeitava-se, choraria por isso no fim da competição.
Como se sabe, não foi o que aconteceu. Luiz Felipe sorriu ao final da Copa, embora Romário tenha continuado a marcar gols até alcançar o milésimo, na fronteira de seus 40 anos de idade. Hoje, 12 anos depois, Romário reluz na bancada de deputado em Brasília ou em comerciais de chinelos de dedo na TV, enquanto Luiz Felipe está no mesmo lugar, como técnico da Seleção Brasileira, só que desta vez com mais cabelos brancos e sem dramas nacionais. Não há, no Brasil de 2014, um Romário, um jogador a ser reclamado por toda a Nação, como foram Neymar e Ganso, os dois jovens fenômenos do Santos preteridos por Dunga em 2010. Não há uma personalidade da TV que grite, como gritava Jô Soares em 1982:
- Bota ponta, Telê!
Não há nem pitaco dos poderosos, como houve em 1969, quando ninguém menos temível do que o general Emílio Garrastazu Médici sugeriu a João Saldanha a convocação de Dario, fazendo com que Saldanha, o João Sem Medo, justificasse o apodo ao retrucar:
- O presidente escala o seu ministério e eu escalo a Seleção.
Não há nem a dúvida que consumiu o próprio Saldanha, antes da assunção de Zagallo, que dizia que Pelé e Tostão não poderiam jogar no mesmo time. E não há nem a dúvida que atormentou Zagallo até o último minuto da estreia em 70, momento em que sacou Marco Antônio do time para colocar Everaldo.
Não há nada disso hoje, no Aterro do Flamengo, quando Felipão divulgará a lista dos 23 jogadores, mais sete suplentes, convocados para a Copa deste ano, a ser disputada aqui mesmo, na pátria amada, Brasil. Felipão até sugeriu que pode haver surpresas, mas qual? O Brasil não grita pela convocação de nenhum craque controverso, porque craques não há; nenhum grande jogador deixou de ser chamado entre os 55 que foram testados pelo treinador nesses últimos meses; o time é esse mesmo que conquistou a Copa das Confederações, sem controvérsias, sem polêmicas, sem confusões e, preocupantemente, sem emoções. Luiz Felipe não precisa mobilizar o grupo contra a crítica injusta, porque não há crítica e não há dúvida. São os que estão aí. Pronto. Se é bom ou ruim, isso só se saberá a partir de 12 de junho, quando a bola rolar no Itaquerão. Até lá, que Luiz Felipe e seus convocados aproveitem a paz, e que essa paz não se transforme na paz dos cemitérios.