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A chuva havia parado, mas a manhã continuava encascurrada. Um céu de chumbo abafava o Olímpico. Com o tempo ruim, os operários que estão derrubando a parte leste do estádio não apareceram. O silêncio era uma trégua da máquina que morde o concreto e cospe o cimento no chão.
Quando Alcindo entrou no campo, um quero-quero passeava ao lado da goleira da área da Avenida Carlos Barbosa. O Bugre Xucro foi até o círculo central e então uma nesga de sol se enfiou pela fresta de uma nuvem. Um solaço iluminou o Olímpíco.
>>> Confira a visita de Alcindo ao estádio em vídeo:
O silêncio e o sol faziam reverência ao homem que poderia ser uma lenda sustentada por versões mirabolantes. Mas existem provas do que ele fez. Alcindo é o maior goleador do Olímpico. São 129 gols em 186 jogos. No total, ali e em outros campos, em 11 anos de Grêmio, ele fez 231 gols em 377 partidas. O Olímpico é o seu templo.
No dia que se ensolarou de repente, o centroavante dos anos 60 e 70 olhava para as arquibancadas do lugar que o consagrou e contava histórias. Aceitara um convite de Zero Hora e fazia a visita de despedida ao estádio que deve ser implodido até o meio do ano.
- Em domingo de jogo, a gente saía dos quartos para o refeitório, para almoçar, e dava uma passada nas sociais para conversar com os torcedores.
No Olímpico dos anos 60, sem o anel superior, os torcedores apinhavam-se em arquibancadas com uma pequena mureta de proteção. Dependuravam-se nas extremidades como se fossem desabar na rua.
Alcindo inspirou milhares de crianças e adolescentes a serem gremistas. A maioria, que ouvia a narração das partidas pelo rádio, nunca o viu jogar. O centroavante foi a estrela de um time vencedor, numa época em que a competição regional dava a medida da rivalidade Gre-Nal.
Até o quero-quero que olha de longe, respeitoso como um sabiá, não faz alarido porque parece saber de quem se trata. Alcindo Martha de Freitas está com 68 anos. Caminha no centro do campo ao lado do repórter Luís Henrique Benfica, que o acompanha na visita de despedida.
Vai contando o que fez. O gol mais importante. O gol mais bonito. O melhor zagueiro que enfrentou, as brigas com o goleiro colorado Gainete.
A máquina que parece um dinossauro mastigador de concreto descansa. O que se vê, para os lados dos cemitérios, são as frestas do que já foi derrubado. O Olímpico vai aos poucos se desfigurando. Quando for implodido, terá tombado poucos meses antes de completar 60 anos.
Alcindo em seu palco preferencial, antes da construção do anel superior.
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O concreto que a mandíbula de aço tritura resultou de sacos de cimento trazidos de todo lado, como as pedras das pirâmides. O Olímpico ergueu-se pela força das doações. Foi inaugurado com festa num domingo - 19 de setembro de 1954.
Alcindo chegou ali sete anos depois. Tinha 16 anos em 1961. Era juvenil do Internacional e estava insatisfeito com a ajuda de custo que recebia para pegar dois ônibus todos os dias de Sapucaia do Sul aos Eucaliptos.
Em 1963, foi emprestado ao Rio Grande, para virar homem levando pancadas no Interior. Pouco antes, o Grêmio havia perdido um dos maiores centroavantes da sua história, Juarez, o Tanque, que fora jogar no Newells Old Boys, da Argentina. Os substitutos eram Marino e Paulo Lumumba. Em 1964, a direção traz Alcindo de volta. Aí começa a nascer um ídolo, o guri irmão de Alfeu e Kim, dois jogadores já consagrados. E o Grêmio domina o Internacional por cinco anos.
O Tricolor como clube de massa deve muito a craques como o zagueiro Airton. Mas deve muito mais a Alcindo, e agora vamos saber por quê.
A ESTREIA
Alcindo estreia num Gre-Nal no dia 23 de abril de 1964, uma quinta-feira à noite. Havia completado 19 anos no dia 31 de março. O Grêmio tinha Arlindo, Renato Silva, Airton, Áureo, Ortunho, Cleo, Marinho, Sergio Lopes, Joãozinho, Alcindo e Vieira. O Inter vinha com Gainete, Edmilson, Rui, Luís Carlos, Sadi, Sapiranga, Parobé, Nilzo, Vanderley, Gaspar e Cacildo.
Aos 25 minutos do primeiro tempo, Alcindo faz o que considera o gol mais importante da sua vida, porque o consagra na estreia de um Gre-Nal. O lateral Renato Silva chuta de longe, a bola bate no joelho de Gainete, e o Bugre marca no rebote. Aos 35 minutos, Alcindo marca de novo.
Alcindo e seus filhos, também centroavantes.
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O Grêmio põe o Inter na roda. Aos 16 minutos do segundo tempo, o Grêmio faz o terceiro. Alcindo mais uma vez. O time ensaia olé, o Olímpico ouve os gritos de uma humilhação, mas o árbitro Ricardo Silva intervém e reprime a brincadeira.
Aparício Viana e Silva treinava o Grêmio. Sérgio Moacir Torres era o técnico colorado. No dia seguinte, o jornal Última Hora estampou na manchete da página de Esportes: "Foi um massacre". E informou que o goleiro Gainete vivera "uma noite infeliz". Vinte e três dias depois do golpe militar, o Grêmio aplicava uma surra no Colorado.
Alcindo e Gainete viraram inimigos. As arquibancadas do Olímpico e do Beira-Rio assistiram a duelos inesquecíveis. Batiam boca, trombavam, ameaçavam-se. O jornalista Claudio Dienstmann, uma das encilopédias do futebol gaúcho, em pé atrás da goleira, assistia a essas brigas que levantam poeira na pequena área.
Alcindo e Gainete se enfrentavam como touros. Na inauguração do Beira-Rio, em 1969, numa briga generalizada em campo, o goleiro tentou dar uma voadora em Alcindo. O Bugre admite:
- Muita gente ia a campo para ver a gente brigar.
O que um dizia ao outro? Dienstmann sabe que é impublicável. Zero Hora tentou, sem que Alcindo soubesse, levar Gainete a um encontro com o centroavante no centro do Olímpico. Seria a reconciliação dos maiores inimigos da história dos Gre-Nais. Gainete não quis conversa com ZH. E Alcindo, quando ficou sabendo, só murmurou:
- Acho que não era uma boa ideia.
Alcindo adorava Gre-Nal. Jogou 31 clássicos, ganhou 11, perdeu nove e empatou 11. Fez 12 gols em Gainete, Schneider, Silveira, Guaporé e Manga. Dois deles em mais um jogaço, em 2 de junho de 1968. O Grêmio fez quatro no Inter do técnico Foguinho. Há dois anos, David Coimbra escreveu:
"Naquele 2 de junho, Alcindo, o Bugre Xucro, pisou no gramado do Olímpico disposto a desmontar a defesa do Internacional".
Foguinho trocara Gainete por Schneider. No início do segundo tempo, falta no meio do campo. Alcindo decide chutar. Schneider dispensa barreira.
No dia da visita ao Olímpíco, Alcindo caminha com Benfica pelo centro do campo e para uns oito metros depois da linha divisória, do lado esquerdo. Comenta que no seu tempo a grama tinha a folha mais larga e que gostava de jogar em campo umedecido por mangueiradas antes dos jogos. E então aponta para o chão:
- Chutei daqui. É de muito longe.
Schneider estava na goleira da Avenida Cascatinha. Alcindo deu uma chinelada. Aos nove minutos do segundo tempo, Schneider tomou um frangaço. Naquele jogo, o Bugre faria mais um, de pênalti.
O jornalista Cid Pinheiro Cabral, colorado, mago da crônica do futebol gaúcho, escreveu na Folha da Tarde:
"Um jogador vestiu sua camisa como o deus do estádio: Alcindo".
O Bugre foi campeão gaúcho de 1964 a 1968, quando o Grêmio encerrou um ciclo de 12 títulos em 13 anos. Era tão forte que parecia ter mais do que 1m71cm.
- Naquele tempo, os treinadores me pediam: de vez em quando, sai da área. Hoje, eles dizem aos centroavantes para que entrem na área.
O MELHOR
Fazia dupla no ataque com João Severiano, o Joãozinho. Gostava da área porque não temia bordoadas e sabia que ali se decidia tudo. Duelou com os maiores zagueiros do Brasil. Do Inter, respeitava Luís Carlos, pela classe. Os que mais temia no Estado eram os irmãos Pontes, o Bibiano, que jogou no Colorado, e o Daison, do Gaúcho de Passo Fundo. Batiam demais:
- Eles davam cabeçadas na nuca.
Mas o maior zagueiro que enfrentou foi seu próprio companheiro de time, o excepcional Airton Ferreira da Silva.
- Ele tirava a bola sem a gente notar.
Segundo os arquivos de Dienstmann, Alcindo enfrentou Airton no dia 21 de junho de 1967, num jogo-treino do Brasil contra a Seleção Gaúcha, no Olímpico. Os gaúchos venceram por 2 a 1. A Seleção se preparava para a Copa Rio Branco, no Uruguai.
Alcindo jogou pela Seleção. Foi à Copa de 1966 na Inglaterra, ao lado de Pelé. Atuou em dois jogos, contra Bulgária e Hungria, com o osso do pé esquerdo trincado. Foi convocado pelo técnico Vicente Feola depois de fazer dois gols num jogo do Grêmio contra a seleção da Rússia, no dia 16 de fevereiro de 1966, no Olímpico.
O gol mais bonito de toda a carreira foi o segundo daquele jogo. Arrancou do campo do Grêmio pela esquerda. Passou por quatro ou cinco russos e, na pequena área, chutou rasteiro no canto direito do goleiro Victor Bannikov, reserva de Yashin, o Aranha Negra, também na goleira da Cascatinha.
- Me lembro que a bola bateu na trave e correu no fundo da rede até o outro lado da goleira.
Em 1971, a pedido de Pelé, foi jogar no Santos. Depois, atuou pelo Jalisco e pelo América do México. Retornou ao Grêmio em 1977 e encerrou a carreira um ano depois, num jogo contra um combinado gaúcho, em 16 de março, 15 dias antes de completar 33 anos. Fez um gol aos 30 minutos e saiu de campo para nunca mais voltar.
Não conseguia mais parar em pé. As articulações estavam estouradas. Alcindo, que nunca teve uma distensão muscular, sentia dores insuportáveis nos joelhos, nos tornozelos, na coluna.
Parado no meio do campo, ao lado de Benfica, aponta para a parte do estádio que abrigava os quartos e relembra as brincadeiras na concentração. Uma noite o ponteiro Babá deitou-se sob a cama de Joãozinho, para assustar o amigo mais tarde. Como sumira da concentração, passou a ser procurado no estádio. Foi encontrado dormindo embaixo da cama.
OS SONHOS
Jogavam, encantavam e se divertiam. Em semana de Gre-Nal, Alcindo ficava de segunda a domingo concentrado. Lembra-se dos massagistas Banha, Dico e Ataídes, do roupeiro Hélio, dos médicos David Gusmão e Alarico Endres, de Hermínio Bittencourt, da administração, de dona Ema Faccin de Souza, que por muitos anos cuidou do museu do Grêmio.
No dia em que foi ao estádio, livrou-se de ver um trabalho penoso. Só depois da visita do Bugre as máquinas começaram a abrir furos nas colunas da arquibancada superior.
As dinamites serão enfiadas nos buracos para a implosão. Inicia-se o trabalho que dará fim ao Olímpico pela parte erguida por Hélio Dourado para transformá-lo em Monumental.
Dias desses, o operário Erlon Centeno, 41 anos, gremista, manejava uma das brocas:
- Tenho a sensação de estar ajudando a derrubar um patrimônio que deveria durar anos.
Ali perto, Sergio Reginaldo de Oliveira Costa, 49 anos, retirava cadeiras que torcedores compraram para levar para casa. Todas sairão antes da implosão. Estão lá à espera do resgate ou do fim com os nomes dos donos: Volnei Pereira Garcia, Ricardo Rios Rauber, Rafael Davi Martins Costa, Fabio Braga, Renata da Silva Denz, Ramiro de Menezes Costa, Marcelo Figueiro...
O Bugre (ele não sabe de onde saiu o apelido, mas sabe que descende de bugres) quer uma dessas cadeiras como lembrança. Ele nunca foi hostilizado por nenhum setor do estádio:
- Eu nunca ouvi vaias. Eu nunca vi o Grêmio ser vaiado.
E não tem queixas:
- Dei muita coisa para o Grêmio, mas o Grêmio me deu mais.
Aponta de novo para a Cascatinha e relembra das noites, em véspera de jogo, em que ia com Banha ver os despachos contra o time. Até cabrito morto aparecia na rua.
Vão implodir o Olímpico como já demoliram Wembley. Vai desaparecer o túnel de azulejos com nomes de torcedores, no acesso às Sociais - os azulejos de Alcides, Rafael, Leda e L. Fritzen, Aguinaldo Rehfeld, Ortiz Schröer, Tailor Andrés, Ademir, Noemia e Maira Decker, Márcia, Júlia, Fábio e Nino Wagner, Julia, Ivanete e Jovir Rebelato, Markus Vidal Damasceno...
Quantos viram Alcindo jogar? Logo que parou, ele sonhava que continuava fazendo gols. O pesquisador Laert Lopes sabe que, se Alcindo fez 129 gols em 186 jogos no Olímpico, sua média era de dois gols a cada três partidas. Em 57 jogos na Arena, Barcos fez 14 gols. Um gol a cada quatro jogos. Não há como não ter saudade de Alcindo.
- Ele foi o maior centroavante do Grêmio. Eu digo isso e me arrepio - confessa Luís Carlos Silveira Martins, o Cacalo, ex-presidente gremista.
Alcindo é o ídolo íntegro, genuíno, inatacável. Poucos jogadores tinham o seu carisma como estrela, como goleador, como alguém que decidia nos piores momentos. Alcindo foi o mais implacável carrasco do Internacional em todos os tempos.
Depois dele, o Grêmio teve pouco mais de meia dúzia de centroavantes que mereceram mesmo a camisa 9: André Catimba, Baltazar, Tarciso (ponteiro goleador, que também atuou como centroavante), Lima, Jardel e, num nível abaixo, Cristian e Cesar. Quem mais? Veja a lista dos esforçados que vestiram a camisa de Alcindo:
Fabio Bala, Gilson, Samuel, Douglas, Rômulo, Somália, Marcos Severo, Charles, Marcus Vinicius, Magno, Zé Alcino, Jacaré, Bira. Chega? Tem mais, vá anotando:
Danlaba Mendy, Nilson, Guilherme, Marcel, Amato, Adão, Zé Afonso, Leandro Amaral, Nildo, Lipatin, Adriano Chuva, Luizão, Grafite, Loco Abreu, Zulu, Tuta, Warley, Perea, André Lima, Júnior Viçosa, Marcelo Moreno, Willian José. E Barcos.
A fila é desordenada. A desordem é coerente com a desimportância da maioria. Faltou alguém? Complete a lista. Em sonhos, na casa onde mora com a mulher, Rosângela, e os filhos Yur, 21 anos, Ray, 17, e Dayó, 10 anos, no Campo Novo, zona sul de Porto Alegre - com ovelhas pastando num gramado -, Alcindo continua fazendo mais gols do que a maioria deles fez no Olímpico.
"Chutei daqui. É de muito longe", Alcindo lembra o gol em Gre-Nal de 1968.
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Só não convidem o Bugre para ver pela TV a implosão do estádio, que ainda não tem data marcada:
- Quero ficar com a imagem linda do Olímpico.
No dia da última visita, ele pode não ter visto, pelo lado de fora, a imagem desoladora das tiras de filó branco balançando como véus na estrutura que está sendo demolida. Protegem o entorno da caliça que desaba.
O cenário que denuncia que o Olímpico vai mesmo tombar é o da curva da Avenida Carlos Barbosa, para o lado dos cemitérios. Ali a paisagem é de coliseu, com colunas carcomidas que afrontam os vivos e os mortos.
AS LOUCURAS
Muitos moradores dos cemitérios avisaram com boa antecedência aos familiares: deveriam ser sepultados em gavetas viradas para o estádio.
Para onde será levado o enorme espelho do salão com a galeria de fotos de ex-presidentes, ornado com anjinhos dourados? O que se salva, o que se vende, o que se doa e o que não escapará da destruição no Monumental? Fica a memória, com números também monumentais. Desde o primeiro jogo, no dia 19 de setembro de 1954, até o último, em 17 de fevereiro de 2013, o Olímpico teve 1.768 partidas. O Grêmio venceu 1.159 vezes, empatou 382 e perdeu 227. Fez 3.510 gols, sofreu 1.306.
Alcindo senta-se na arquibancada ao lado do portão 6, com Benfica e os filhos Yur e Ray, também centroavantes. São observados pelo ex-zagueiro e lateral Renato Cogo, que encontrou Alcindo por acaso na visita.
Atrás da goleira, o quero-quero passeia. Amanhã poderá não estar mais ali. Gaviões treinados sobrevoam o campo de vez em quando. Recolhem os quero-queros com suas garras e os entregam intactos a um treinador que os coloca numa gaiola. Os bichos são levados para campos da Grande Porto Alegre. Salvam os quero-queros antes da implosão que Alcindo não quer ver.
Mas não há como salvar tudo. Como uma inscrição com tinta azul na parede encascurrada da arquibancada superior. A frase tatuada no cimento em 2 de dezembro de 2012, no último Gre-Nal do Olímpico, será implodida em março. Diz assim:
"Aqui vivi loucuras".
Quem assina identifica-se apenas como Fernando. Mas você aí, seus pais, filhos, irmãos, seus avós, seus amigos, seus vizinhos e, claro, Alcindo - todos vocês e milhões de gremistas poderiam assiná-la. Mesmo os que nunca foram ao estádio.
Ao lado da inscrição, brocas roem colunas de concreto e abrem buracos para as dinamites. O Olímpico é furado, triturado, esfolado, até o momento em que for implodido e arrear em segundos. Tudo o que um dia foi erguido terá virado pó, menos sua memória monumental e suas loucuras. E então também o Olímpico será imortal.