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Augusto Sérgio Ferreira, o Guto Ferreira, paulista de Piracicaba, dois filhos gaúchos e mais de uma década e meia de seus 51 anos vividos no Rio Grande do Sul, esteve por um fio como técnico do Inter. A vaia pegava. A imprensa não tratava de amenidades com ele.
Os protestos com depredações no Beira-Rio assustavam, mesmo que produzidos por uma minoria idiota. O Inter demorava a habitar o G-4, e isso constrangia. Os fantasmas do ano passado seguiam traumatizando mentes e travando músculos. Culpa de quem? Do técnico, claro.
Recém-chegado, Guto não tinha nada a ver com boa parte disso. Mantinha o tom pacato nas entrevistas, mas as baterias se voltavam contra ele sem dó nem piedade. É assim no futebol brasileiro.
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A direção teve o mérito de mantê-lo no meio dessa tempestade. E veio a bonança. Ao menos até o jogo deste sábado contra o ABC, em Natal, são quatro vitórias seguidas, folga no G-4 e pressão no América-MG pelo topo na tabela.
Conversei com Guto para o meu quadro Te Pago um Café, no Bom Dia RS, da RBS TV. O conjunto da obra ficou aqui para a superedição de ZH. O cardápio é farto e não cabia mesmo em um cafezinho matinal: Gordiola, D'Alessandro, churrasco, regime, Nico, chimarrão, Pottker, vaias, Damião, aplausos, esquemas táticos, machismo, família, conceitos. Bom apetite.
A boa fase demorou a chegar?
Se você analisar o tempo que tivemos de trabalho propriamente dito, acho que veio no tempo adequado. Foram sete jogos em sequência quase sem treinar. Foi o período mais difícil. Tivemos de manter o plantel sem lesões, inclusive escalando time alternativo contra o Figueirense, pois o grupo vinha de uma sequência de partidas desgastantes, com Copa do Brasil e Gauchão. Então o tempo de clube era maior do que o de trabalho para implantar ideias, algo só possível com semanas cheias de treino.
Como as vaias te atingiram?
Cara, para ser sincero, nem estava muito próximo para ouvir esta coisa do nome vaiado no alto falante. Nessa hora a gente está no vestiário, focado. Acompanho o trabalho de vocês, mas não dá para ler e ouvir tudo. Sei como são as coisas no futebol. É normal. Em todos os clubes pelos quais passei o começo foi difícil. O meu modelo de trabalho leva mesmo um tanto de tempo. Já chego preparado. Mas, ao final, os resultados têm sido positivos.
E o aplauso, que ficou mais claro durante e depois do jogo com Londrina, no Beira-Rio?
Ah, reflete muito dentro do vestiário. O nosso dever é saber lidar com isso, na boa e na ruim. Não podemos nos queixar do nosso torcedor. Ele veio com o time. É difícil explicar como funciona essa coisa da energia da arquibancada, sabe? O fato é que você sente na pele quando o ambiente está favorável ou não.
Faz diferença viver cenas assim em um clube no qual você ficou 13 anos?
Ah, totalmente especial. O Inter me abriu as portas. O presidente do Bahia dizia que só tinha medo se o Inter viesse. Ele sabia que eu não tinha o direito de dizer não ao Inter, que me ajudou tanto. É uma coisa que mexe. Difícil até de falar ou explicar.
Você é do interior paulista (Piracicaba), mas passou muito tempo em Porto Alegre. Adquiriu hábitos como chimarrão, por exemplo?
Chimarrão, não....
E churrasco?
Churrasco, sim (risos). Meus dois filhos gaúchos. Um deles vai prestar vestibular na UFRGS (tentará Direito), quer estudar aqui. Tenho um laço eterno com esse Estado, através do Inter.
Você se incomoda com as brincadeiras sobre o seu peso?
Acho que a gente tem de se assumir como é. A sociedade não e feita só de magros. Tem todos os tipos de perfis físicos. Tem os porquês de eu ser dessa maneira fisicamente, e tenho consciência disso. Mas tudo que vem de uma maneira carinhosa eu não tenho razão alguma para achar ruim.
Já pensaste em perder peso, fazer regime?
Se amanhã ou depois eu tiver de emagrecer, sem problemas. Mas tenho de ter liberdade de fazer minhas escolhas. O mais importante é as pessoas não me discriminarem pela minha aparência física. Tenho de ser analisado pelo meu trabalho. Se isso acontecer, aí é discriminação, bullying, essas coisas.
A ideia do personagem Gordiola brincava pelo lado positivo, então.
Claro. Foi uma sacada do Avancini (Jorge Avancini, executivo de marketing do Bahia, que trabalhou no Inter) levar adiante. Já tinha na Ponte. Era divertido! Tinha bonequinho, a torcida levava cartaz. Virou quase mascote. Muito legal.
Aquele episódio da resposta machista para a Kelly Costa, repórter da RBS TV, em que você você admite o erro e pede desculpas em vários programas de TV, publicamente, me parece ter te humanizado aos olhos do público, mostrando um lado além do trabalho. Você sentiu isso?
Interessante você me trazer essa percepção. Fui infeliz na hora da construção da frase após um jogo em que fomos mal. Tropecei nas palavras. Não quis magoá-la. Não quis discriminá-la em momento algum. Pensei muito nisso ao pedir desculpas. Sou pai, tenho mulher, filhos. Se cometi um erro, e cometi, achei que tinha de me desculpar na mesma medida, incondicionalmente. Ali, eu caí. Mas a força para se levantar te faz melhor e mais forte.
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O que jogadores de lado, como Pottker e Sasha, precisam te dar para ficar no time, dentro do modelo tático atual?
O primeiro aspecto que trabalhamos muito foi o resgate da pegada, marca do futebol gaúcho e, principalmente, do Inter. O time é extremante técnico, tinha qualidade na posse de bola, mas na hora da retomada, do desarme, faltava alguma coisa. O meu modelo de trabalho exige muita intensidade de jogo. E para atingir e manter essa intensidade você tem de estar adaptado fisicamente. Então, precisava de um tempo para essa adaptação. Quanto mais perto da área adversária você roubar a bola, mais próximo estará do gol. E com desgaste menor, pois o time todo se deslocará menos para trás e menos para a frente. Só que, para isso funcionar, é preciso posicionamento adequado desde lá na frente. Pottker e Sasha ajudam nisso.
Porque você entende ser mais produtivo Camilo ou D'Alessandro, em vez de os dois juntos?
As pessoas dão muita importância para quem começa, mas nem sempre o que entra depois é menos importante. Você pensa o jogo com até 14 jogadores, somando substituições. O importante é o resultado final para o conjunto. Essa cultura dos 11, do titular e do reserva, é bem brasileira.
Dê um exemplo.
Contra o Luverdense, seguramos o D'Alessandro e soltamos depois. Fomos felizes. E quando começamos com o D'Ale e colocamos o Camilo depois tem dado certo igualmente, pois a gente consegue manter a intensidade, a qualidade, a essência do que queremos para o todo. O técnico tem de focar no resultado final para o time, usando suas peças, e todas elas são importantes. Que vem do banco pode ser até mais importante na tua estratégia.
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Você usou o Sasha já contra o Santa Cruz. Pensava nele desde lá no 4-1-4-1?
Sim. Ele tem muita entrega e consciência tática sem perder qualidade e ofensividade. Mas vinha de lesão. Demorou a se firmar por isso.
Com Pottker é mais complicado de repetir esta parte tática?
Não. Ele já fazia essa função na Ponte, pelo lado.
E o Nico López?
O Nico é um segundo atacante que pode, pela sua qualidade, ajudar como 9 mais fixo. Ele pode atuar pelo lado. Está passando por essa adaptação, com as funções táticas da beirada. Se, daqui a pouco, a gente resolver jogar com o falso 9, o Nico será fantástico, pelo talento e a inteligência, a frieza dele para fazer gols. O potencial dele é diferenciado. Mas tudo passa por um processo. O jogo tem 90 minutos e não acontece só com a bola. Nosso trabalho não é para ele jogar bem uma, mas várias partidas. O Nico está empenhado nisso.
Você pediu o Damião?
Dentro do processo de estruturação da equipe, eu precisava de um centroavante de referência. Coloquei para a direção apenas que não podia ser mais um. Tinha de ser um para chegar e jogar. E a direção agiu muito bem. Bem ou mal, nosso crescimento coincide com a sua chegada.
Em que estágio você enxerga o Inter?
Dentro da estruturação da equipe, em termos ofensivos, já temos como escalar uma equipe equilibrada no 4-1-4-1 mesmo alternando sua formação em termos de nomes. Na linha defensiva, temos de trabalhar algumas questões, mas estamos conseguindo, daqui a pouco, firmar duas equipes, variando alguns atletas, sem perda de qualidade e intensidade, com pegada, ou seja, sem perder a essência do que imagino correto para um time.
O acesso virá com rodadas de antecedência?
Costumo dizer que elevar demais uma expectativa pode desvalorizar a conquista em si. Prefiro ir no passo a passo, sem desvalorizar adversários. A medida que formos vencendo jogos, esse cenário pode um não se abrir. Vamos esperar.
Para fechar: quando o Inter vai subir e, se subir, se vai ser campeão.
Não tenho bola de cristal, infelizmente (risos). Aliás, bem que eu queria, para ter responder com exatidão e facilitar a minha vida (mais risos). Só posso dizer que seguiremos trabalhando muito por tudo isso. No Inter, ser campeão é uma exigência natural.
Como você se coloca nesta questão do estudioso ou não?
Bem, eu não fui jogador profissional. Ponto. Então, minha carreira sempre foi formada pelo outro lado, de buscar o estudo, mas sem abrir mão jamais da prática. Dirijo futebol desde os 16 anos. No Inter, cheguei com 33. Busco aprender sempre.
Pensa em seguir no Inter em 2018?
Tomara que eu consiga conquistar a credibilidade da direção e da torcida para tanto. Seria uma realização profissional.
*ZHESPORTES