Aime Lema foi o primeiro a chegar. Técnico do ASF Fratia Bucareste, time intermediário da quinta divisão romena, Lema chegou mais cedo do que o costume para uma partida. Porém, aquele dia seria diferente: seria o primeiro no comando.
Ele ficou em pé sozinho no meio do campo esburacado do estádio do clube. Num dos lados se via um guindaste há muito tempo abandonado e os restos avermelhados em decomposição da antes pujante metalúrgica Vulcan, localizada nos arredores da capital romena, Bucareste.
No outro lado, campos pantanosos abertos se perdiam no horizonte. Um pastor tocava um rebanho de ovelhas. Um cercado de arame com galinhas, um galo e um cabrito dividiam o terreno com uma plataforma metálica azul despencando e a sede decadente do clube, sem eletricidade.
Aos 45 anos, Lema cutucava os trechos sem grama no campo com o pé enquanto falava com os jogadores ao celular. Era uma manhã fria e eles preferiam passar o Florii, o Domingo de Ramos, segundo a tradição da Igreja Ortodoxa Romena, com as famílias.
- Por favor, venha. Hoje é um dia importante para o Fratia e para mim, Lema pedia suavemente.
O Fratia, cujo nome significa irmandade em romeno, é especial por ser o único clube da liga que funciona sob os princípios da igualdade e da não discriminação. Idade, raça, religião, etnia e invalidez não são barreiras para conquistar um lugar no time; bastam determinação e um pouco de talento.
Por exemplo, peguemos o próprio Lema, o primeiro e único técnico negro no futebol romeno. Depois, o goleiro, que nasceu com só uma das mãos, e o proprietário, que também atua como jardineiro da equipe.
O centroavante do time tem 46 anos, é meio pançudo e a calvície avança entre os cabelos grisalhos. E muitos dos jogadores do Fratia são ciganos, grupo difamado na Romênia, bem como em outras partes da Europa.
Neste domingo, Tudorel Mihailescu, 47 anos, o goleiro, cujo braço esquerdo não ultrapassa o cotovelo, foi o primeiro jogador a chegar.
- Sempre sonhei ser goleiro. Sempre gostei de controlar o ritmo do jogo e dizer aos outros o que fazer.
Mihailescu era mais rápido do que os outros goleiros no gramado, sabia tocar a bola melhor com os pés e aprendeu sozinho como arremessar com precisão e força com o braço direito. Contudo, durante o regime comunista, que caiu em 1989, as autoridades o impediram de jogar por conta da deficiência.
- Eu tinha de visitar os médicos para ter permissão de jogar. Demorou um ano para a autorização sair. Era quase impossível jogar futebol com um braço só naquela época.
Mihailescu encontrou sua casa no Fratia. O clube tem três times: um na quarta divisão, um na quinta e o de veteranos. Mihailescu é o goleiro reserva no da quarta divisão e titular nos outros dois.
A respeito do clube, Lema fala: Nós somos a irmandade, e é por isso que os jogadores vieram, porque jogamos há anos e somos amigos.
Lema nasceu em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, e foi para a Romênia em 1991, depois do fim do comunismo, para estudar engenharia química. Ele se casou com uma romena, teve filhos, aprendeu o idioma e ficou.
- O problema aqui era o período comunista, quando o país estava fechado. Houve pouca discriminação por eu ser negro. Eles tinham uma mentalidade diferente porque não cresceram convivendo como outros como eu, respondeu Lema quando indagado sobre por que é o único técnico negro na Romênia.
No Fratia o dinheiro é pouco, não existem câmeras de TV e os torcedores são escassos. O fundador e proprietário do time é Constantin Zamfir, 50 anos, ex-jogador da segunda divisão romena. Ele paga aos jogadores cerca de US$ 45 por partida, uma quantia razoável numa país onde médicos recém-formados ganham um pouco mais de US$ 200 mensais.
Zamfir banca os mil euros mensais que mantêm o clube. Ele também cavou o poço que fornece água, fria, para os chuveiros, nivelou o campo com areia e plantou a semente da grama que recobre a maior parte do gramado.
- Eu quis fundar um time para provar que é possível ter êxito com o melhor exemplo possível, que nossas portas estão abertas para todos, independentemente de raça, idade ou condição física.
Ele disse esperar que a equipe da quarta divisão pudesse subir para a terceira ou até mesmo para a segunda divisão.
- Vou provar que podemos fazer algo positivo. Não roubando e batendo, mas sendo irmãos.
Muitos jogadores têm pouco dinheiro e até mesmo a comida é um artigo de luxo.
- É por isso que tenho galinhas e cabras. Eu crio e dou aos jogadores no fim da temporada quando eles estão famintos. O Fratia se resume a isso: dividir o pão, disse Zamfir, apontando para o cercado.
Zamfir fundou o clube em 2001 e comprou o terreno em 2003, quando a fábrica da Vulcan que, entre outras coisas, produzia bombas para poços de petróleo, foi privatizada e praticamente abandonada. Zamfir hipotecou a casa e usa o lucro de seu mercado, bem como o dinheiro do emprego noturno como cantor de casamentos, para bancar os custos do clube.
Poucos antes do pontapé inicial contra o Stefimar naquele domingo, Zamfir costurou os buracos nas redes dos gols, encheu uma máquina velha com cal e pintou as linhas brancas no gramado.
- É muito caro conseguir outra pessoa para fazer isso, ele disse enquanto manobrava a máquina barulhenta.
Os 22 jogadores se alinharam no centro do campo 15 minutos depois do planejado; o bode de Zamfir escapara do cercado e fizera um rebuliço no gramado antes de ser pego por um jogador do Fratia.
Os jogadores do Stefimar pareciam mais jovens e em forma, e a partida não começou bem para o Fratia.
Em poucos minutos, eles perdiam por um a zero, quando um chute rasteiro enganou Mihailescu. Lema ficava em silêncio na lateral do campo; o técnico do Stefimar berrava com os jogadores como se eles estivessem perdendo.
Entretanto, o gol acordou o Fratia. Quando o Stefimar atacava, Mihailescu se mostrava imbatível, rebatendo tudo que vinha em sua direção. Numa cobrança de falta, ele fez uma defesa fabulosa com uma só mão. Quando, após um escanteio, a bola estava na marca de pênalti, ele a socou com o punho.
O time tem tanta fé em Mihailescu que, no final do segundo tempo, o Fratia mantinha somente um jogador na defesa. No último minuto de jogo, o time foi recompensado. O goleiro do Stefimar deu uma tesoura na perna de Nita Soare, do Fratia, que saiu voando. Foi marcado pênalti e o chute de Iulian Moga explodiu no fundo da rede.
A partida terminou empatada em um a um. Lema não ficou feliz com seu primeiro comando.
- Eu mesmo deveria ter jogado hoje. Teria marcado três gols, quem sabe quatro.
Já Zamfir estava feliz. Ele acendeu o fogo na churrasqueira e assou frango e arenque para os jogadores. A irmandade comeu e planejou o próximo jogo.
Mihailescu tinha outras preocupações. O goleiro titular da equipe da quarta divisão do Fratia estava machucado. Na semana seguinte, Mihailescu iria substituí-lo.
- Vou treinar a semana inteira. É um sonho entrar em campo. Esse é o meu lugar, com o time, ele falou empolgado, bebendo cerveja com a mochila e as luvas penduradas no braço deficiente.