
Às vezes amanheço com dúvidas se gosto mesmo de futebol ou somente do Brasil-Pel. Porque, para mim, o campeonato mais importante não é aquele pelo qual as emissoras de TV pagam mais caro, mas sim o que o Xavante joga. E o Xavante, bem, não tem disputado taças dignas de mesa redonda em TV a cabo, tampouco capazes de reunir coxinhas diante de telas de plasma no pub.
Porque sou jornalista, vivo em São Paulo, e para conservar um mínimo de convívio social, até acompanho a Série A e um ou outro torneio europeu. Mas definitivamente não pertenço a esta fauna de estádios com astral de shopping center e liturgia de ópera, cujos ingressos custam um terço do salário mínimo.
Sou como o sujeito fissurado por música que, mesmo com toda parafernália digital à disposição, cultiva um vinil porque entende a sujeira como parte integrante da experiência. O Brasil-Pel é meu chiado, o dedo do guitarrista deslizando pelas cordas. Precisa existir, sob pena de perdemos a autenticidade.
Obviamente, tudo isto é elaboração sobre uma condição genética. Nasci xavante, como um gay nasce gay, um daltônico nasce daltônico. Herdei a paixão do meu pai, ele, paradoxalmente, um xavante de gestos parcimoniosos, incapaz de gritar além de 50 decibéis numa arquibancada.
Creio que a doença, além de hereditária, seja progressiva. Fiz uns cálculos que, divulgados fora de contexto, poderiam inclusive abalar a solidez do meu matrimônio. Ao término desta quarta divisão, terei rodado 2,6 mil quilômetros e voado 1,3 milhas aéreas atrás do meu clube.
É sobre esta jornada insana que trato aqui. Enquanto você folheia esta página, estarei em Muriaé, na Zona da Mata mineira, esperando a final da Série D contra o Tombense. Desfrutarei da companhia de pelos menos mil almas desajustadas como a minha. Seria bom que ganhássemos, até para que o clube se beneficie economicamente.
Mas, se o infortúnio vier, voltaremos para casa com uma convicção inabalada: o campeonato mais importante sempre será aquele que o Xavante joga.
Itu, 19 de julho - Ituano 0 x 1 Brasil-Pel
Roguei pelo final da Copa do Mundo, que só atrapalhava a estreia do Xavante. Foi um alívio quando me vi nas ruas estreitas de Itu. No entorno do Novelli Júnior, ruminando um bife à parmegiana servido com fidelidade às largas dimensões cultuadas no município, cumpri a prazerosa sina de um xavante: reencontrar afetos. Depois de uma dúzia de abraços demorados, como a turma que assava um churrasco no latão, e eu não podia mais enxergar carne pela frente, decidi logo entrar no estádio. Foi uma decisão pouco sábia.
O anfitrião, que mesmo com o título do Paulistão não carregou mais de 800 almas ao campo, cometeu a indelicadeza de nos meter atrás de um dos gols, debaixo de um sol inclemente. Ali, espremendo as pálpebras, vi um dos nossos raspar a bola para dentro da rede dos caras. Até hoje não sei quem fez o gol, mas jamais esquecerei do abraço maior do que tudo que há em Itu que recebi do meu filho. Seria até ganancioso pedir algo mais naquela Série D. Não pedi, mas veio.
Cabo Frio, 13 de setembro - Cabofriense 1 x 0 Brasil-Pel
Ok, perdemos com um gol do vento que soprava, com a fúria de um Minuano. Mas elevamos o estádio do Cabofriense ao padrão-Fifa. Naquela noite de sábado, havia burburinho incomum pelos pés sujos do Jardim Caiçara, bairro onde fica o estádio. Xavantes se apinhavam nos balcões para aplacar a sede. Foi um deles quem me apontou a bilheteria, onde os ingressos eram vendidos a inacreditáveis R$ 10. Comprei até para meu filho de nove anos.
- Pagou para uma criança? Para que, homem?! - disse o porteiro, carregando nos anasalamentos do sotaque carioca.
Introduzimos a faixa da torcida com extrema facilidade no estádio. Não houve revista. Em instantes, passavam de mão em mão copos de uísque e vodca. Lá pelos 20 minutos do primeiro tempo, quando os caras já nos venciam, vi um companheiro afogando a dor num latão de Skol.
Podíamos sair quando bem entendêssemos e ir ao bar da frente comprar e voltar com qualquer tipo de bebida, cerveja, garrafa de cachaça, caipirinha, refri de dois litros, bolinho de bacalhau, pastel. Comemos e bebemos como num camarote da Copa do Mundo. O Brasil-Pel fez isto por Cabo Frio.
Taguatinga, 19 de outubro - Brasiliense 2 (3) x 1 (4) Brasil-Pel
Uma semana antes, o Brasiliense chegou a Pelotas invicto e saiu de lá derrotado por 2 a 1. Mal o árbitro apitou o final da partida no Bento Freitas, corri para o site da Gol. Me alistei para a batalha do Planalto Central, a derradeira chance de subir para a Série C. Não fui nem de longe o único. Lembro de um rapazote diante do Congresso Nacional, que, aturdido com a quantidade de gente com a camisa do Brasil de Pelotas, tomou coragem e me abordou.
- Tchê, sou de Pelotas, sou xavante, mas moro há muito tempo fora. Por que estão tantos de nós circulando pela Esplanada dos Ministérios?
Respondi enciclopedicamente e cassei-lhe o direito de se declarar xavante. Não existe xavante não praticante. Ou se é, ou não se é. E tenho pena dele. Porque, horas depois, sob os desérticos 35 graus com 15% de umidade de Taguatinga, experimentei a maior emoção como torcedor. Estava a uns 150 metros de distância, quando vi o Forster, nosso lateral canhoto, sacolejar a rede dos caras no derradeiro chute da decisão por pênaltis. Ali perdi os sentidos. Se meu peso não fosse medido em três dígitos, diria que levitei pelas arquibancadas.
Quando recuperei a consciência, estava encostado no alambrado do Serejão, gritando frases desconexas de gratidão ao treinador. Houve quem comparasse aquele momento ao nascimento de um filho. Tenho dois filhos e um acesso, portanto, não chego a tanto. Mas, quase um mês depois, sigo aprisionado em pensamentos incapazes de sair da órbita das emoções vividas naquele final de semana mágico. Brasília nunca foi tão justa comigo.
Londrina, 2 de novembro - Londrina 2 x 2 Brasil-Pel
Desertei desta viagem porque o sofrimento psíquico de Brasília me exauriu os nervos. Não tinha condição emocional nem mesmo para ouvir pelo rádio. Decidi ir ao Belas Artes ver um filme argentino, que desgraçadamente tinha 80 minutos. Quando saí, o jogo não tinha acabado. Liguei o celular e soube que vencíamos por 2 a 0. Um grito de júbilo ecoou pela Rua da Consolação, mas, antes que o silêncio se recompusesse, o Londrina empatou.
Desliguei o celular, sentei no meio-fio, imerso na solidão dos moribundos, apesar da testemunha paciente da minha mulher. Cinquenta minutos depois, me reconectei ao mundo e não se falava do resultado, só da pancadaria. Não farei juízos de valor porque a paixão não é um bom diapasão para assuntos sérios. Mas me permito uma correção: só quem faz churrasco em grelha confunde o pau da bandeirinha com um espeto.