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Entrevista

Magrão: o maloqueiro feliz que deu um carrinho no câncer

Volante do Novo Hamburgo relembra passado na favela e luta contra a doença

Diogo Olivier

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Márcio Rodrigues, 36 anos. Magrão. Volante. Ex-Seleção, São Caetano, Palmeiras, Corinthians, Yokohama Marinos, Inter, Al Wahda, Dubai, Náutico, América-MG e Novo Hamburgo. Corintiano, mas colorado. Paulista, mas gaúcho. Quatro filhos. Matheus (17) e Pedro (11), tatuados nos braços. Eduarda (14) é enteada, mas conta como filha. O caçula Márcio, 3 anos, é cidadão dos Emirados Árabes.

O câncer que obrigou Magrão a extrair um testículo e sua obrigatória medicação para seguir vivo, drama pessoal desnudado após o exame positivo em um jogo contra o Inter, no Gauchão, é só mais uma dificuldade de uma vida que tinha tudo para dar errado, mas deu certo. Magrão é um sobrevivente. É o seu mérito em um país que ainda oferece muito para poucos e pouco para muitos. A cada obstáculo, um carrinho, para depois sair jogando de cabeça erguida. E muitas histórias, como o dia em que recusou salário de R$ 500 mil.

O que leva um jogador com a vida ganha a jogar em clube pequeno?
Minha mulher é gaúcha. Tenho negócios aqui.  Minha relação com o Inter fincou raízes neste Estado. Comprei casa em Porto Alegre. Além do mais, o projeto do Novo Hamburgo é sério. Por que o Nóia não pode ser o que foi o São Caetano na virada do século?

Você passou quatro anos nos Emirados. Como foi lá?
Me deram a cobertura de um hotel no complexo do Al Wahda.  Abu Dhabi é uma cidade moderna, maravilhosa. A segurança pública é total. É uma tranquilidade que você não tem no Brasil. E a parte financeira compensa a distância dos amigos.

O Inter não te procurou neste período?
Saí em 2009 do Inter e quase voltei em 2012. Terminou não rolando. Eu tinha receio de retornar para um clube tão importante para mim sem condições de dar retorno imediato. Perde-se o pique no Mundo Árabe, não tem jeito. Demora a retomar.

Queria voltar?
Minha família era contra. Eu estava sempre em casa. Meu filho menor (Márcio, três anos) nasceu nos Emirados e já fala inglês. A Eduarda (sua enteada, de 14 anos) praticamente se alfabetizou em inglês. Imagine o ganho de vida disso para eles. Mas senti falta do assédio maluco do brasileiro, do ritmo de competição.

Aí você foi para o Náutico.
E depois América-MG. Rompi o cruzado do joelho no primeiro treino. Fiquei oito meses parado.


Foto: Omar Freitas/Agência RBS

Pensou em desistir?
Dificuldade, para um cara como eu, não pode ser problema.

A infância na favela foi traumática?
Cresci feliz em Heliópolis. Perdi amigos para o crime, no tráfico. Alguns morreram. Outros foram presos. Não tenho vergonha de falar. Ajudei pessoas a sair desta vida com o que futebol me deu. A vida na favela não te dá a fartura de opções do asfalto. Você acaba encarando tudo com normalidade: ouvir um tiro, se proteger das balas, saber que acharam um corpo. Meu pai era metalúgico. Ele me pegava no colo quando dava alguma confusão entre polícia e bandidos na rua, apontava o dedo e dizia: "Tá vendo, filho? O teu pai não faz isso". Minha mãe nos proibia de entrar em casa com uma caneta que não fosse nossa. Éramos pobres, mas dignos. Cuidei de carro, fui marcineiro. Sou maloqueiro, com orgulho.

Teus filhos conhecem Heliópolis?
Claro! Faço questão que saibam de onde eu vim. Quando eles reclamam, sei lá, que caiu o sinal de 4G do Ipad no carro, eu conto uma história de Heliópolis. Eles já me zoam: "Já sei, pai: lá não tinha..." Festejei meus 30 anos na comunidade. Fazemos dia das crianças, com brinquedos. Minha mulher se espantou que lá não batia sol. São becos, ruas estreitas, barracos empilhados. No morro ninguém se preocupa se bate sol. A gente não vive: sobrevive.

Mas teus filhos cresceram numa realidade de conforto.
Sabe o que é? Eu morria de medo de um deles virar um playboyzinho. Terminei o ensino médio em escola privada, com bolsa de estudos que o futebol me possibilitou. Vivi este conflito, de ver aqueles caras se achando melhores por ter dinheiro. Um cara com a minha trajetória, que passou o que eu passei, não podia deixar um filho sair assim. Hoje eu sei, claro, que nem todo o cara que tem grana é um boçal. Mas tenho nojo de ostentação.


Foto: Omar Freitas/Agência RBS

Há ostentação no futebol?
Claro. Você vê muito moleque que mal começou cheio de pinta, já querendo mostrar que tem grana, virando o rosto para entrevista. O craque não é arrogante, salvo exceções. Mas tá cheio de comum se achando o rei do pedaço. Deve ser por isso que tem este preconceito irritante: jogador de futebol é burro. O cara está com uma mulher bonita do lado e já dizem que é por dinheiro. Eu curto ler. Tento melhorar.

O que você está lendo?
Acabei a biografia do Eric Clapton.

Qual o seu time do coração?
Eu nasci corintiano. Minha família toda. Só que comecei no Palmeiras. Meus pais nunca foram me ver ao vivo no Palmeiras. Aí, quando voltei do Japão para o Corinthians, logo na estréia, a caminho do estádio, toca o telefone. Era meu pai, na arquibancada. A Placar fez aquela foto minha com os braços abertos e a tatuagem, rasgando o filme: sofredor e maloqueiro. Mas o grande time da minha vida foi o Inter de 2008, campeão da Sul-Americana. Que baita time, todo certinho, com o Tite de técnico! Ganhávamos jogando bem. Meu coração é colorado.


Magrão marcando Verón na final da Sulamericana 2008. Foto: Valdir Friolin/Agência RBS

O câncer te fez temer a morte?
Primeiro bateu a depressão, ao saber que tinha de tirar um testículo. Depois me irritei. Eu pensava: "Por que eu?". Os médicos falavam em árabe ou inglês. Eu não entendia nada. Nem sabia o que era metástase. Teve um dia que cheguei em casa e minha filha estava ajoelhada na casa, rezando. Cara, dá muito medo de morrer. Nunca joguei bola para ser rico, e sim compensar a pobreza da minha infância. Consegui um padrão de vida, uma casa bacana, um carro, viagens legais com a família. Aí você pensa: qual a real importância disso?

Foi o pior momento de sua vida?
Sim. Nada é pior que ver a morte de perto. Tive de recusar proposta de R$ 500 mil mensais da Unimed para jogar no Fluminense, à época do diagnóstico. Agora que a luta contra a metástase já passou, vejo um lado bom nisso tudo. Você vê a vida de outro jeito. Aceita melhor as coisas como elas são.  Se irrita menos com os filhos. Fica mais tolerante. Enxerga beleza onde antes não via.


Foto: Diego Vara/Agência RBS

E a contraprova do antidoping?
Tranquilo. Tenho tudo documentado acerca da medicação que tomei para combater a doença, as internações, laudos médicos, tudo. Volta e meia podem aparecer mudanças hormonais.  Só lamento ter sido obrigado a tornar tudo público. É algo chato, pessoal.

Quando parar, o que Magrão fará?
Tenho propostas da Série A, mas ainda não posso falar. Antes preciso de ver como ficará o calendário do Novo Hamburgo, que tão bem me acolheu. Quando parar, talvez mexa com negociação de jogadores. Mas toco negócios fora do futebol também. Não sei ainda. Na hora certa, tomarei a decisão.


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