
Há quem saiba, no ambiente do futebol. Na torcida em geral, não é informação corrente. Fernando Büttenbender Prass, há anos um dos goleiros mais importantes do Brasil, é gaúcho. No caso, muito gaúcho. Preserva o sotaque e toma chimarrão com frequência alarmante para quem mora em São Paulo, assessorado nos paramentos pelo gerente de futebol Cícero Souza, outro nascido na Província de São Pedro. É um confraria: os argentinos do Palmeiras se aprochegam e está feita a roda de mate dos viventes.
A erva castelhana, como se sabe, é mais amarga. Mas, para quem virou goleiro por acaso, destacou-se entre centenas de crianças no Moleque Bom de Bola, enfrentou a guerra que é um Praiano em Capão e Tramandaí e passou fome no começo da carreira, mate amargo é banana amassada com açúcar. Prass começou no futsal, na alvorada dos anos 90. Demorou a dar o estirão e atingir 1m91cm que o ajuda a fechar o gol do Palmeiras. Era pequeno, com habilidade suficiente para ser titular na linha do Independência, de Viamão. Até que, um dia, o goleiro faltou.
A solução foi o ancestral rodízio: um gol para cada um. Quando chegou a vez de Prass, ele fez uma defesa. E outra. Depois outra e mais outra. O técnico peguntou se ele se importava em ficar mais um pouco, sem dar a vez ao próximo. Assim nasceu um goleiro.
Conversei com Fernando Prass horas antes do seu Gre-Nal particular no Beira-Rio, pela Copa do Brasil, no meio da semana. Sim, Prass é gremista. E também um sobrevivente.
Descoberto pelo Grêmio no Moleque Bom de Bola, tinha de buscar espaço sabendo do limite instransponível sob qualquer aspecto: Danrlei. Para completar, os reservas Murilo e Sílvio, quando entravam, davam conta do recado. Sílvio pegou até pênalti de Marcelinho Carioca com o dedo quebrado, na Copa do Brasil de 1997, depois de Murilo ser expulso contra o Corinthians. Em um grupo no qual até o terceiro goleiro era herói, tinha mesmo de arriscar. Então ouviu um conselho que mudaria sua vida e, ao mesmo tempo, produziria sua maior decepção profissional. O supervisor Antônio Carlos Verardi sugeriu que fosse emprestado. O clube era a Francana, do interior paulista, assumida por um grupo de investidores. No começo, tudo ótimo. Só que, de repente, os mecenas sumiram:
- Faltou até uniforme. Passei dias só no arroz e salsicha. Ali, confesso, pensei em abandonar tudo.
A dificuldade virou oportunidade, conforme a intuição de Seu Verardi, uma lenda ainda em atividade no Grêmio. Um olheiro o levou para o Vila Nova. Os problemas terminaram. Tornou-se um Danrlei no Planalto Central. Deve ter obrigado muito jovem a amarrar a corda noutros ancoradouros para não se afogar, como aconteceu com ele. Repetiu a dose no Coritiba, União de Leiria - os dois filhos nasceram em Portugal -, Vasco e Palmeiras.
Sempre titular, sempre ídolo. Menos no Grêmio. Menos em Porto Alegre, onde moram familiares seus e onde passa parte das férias. Aliás, no dia 19 de outubro, Prass participará de workshop promovido pela Poker e pela escola de goleiros Fechando o Gol, do ex-são paulino Zetti, no Teatro do CIEE, na capital:
- Chamar de grande frustração da minha vida talvez seja forte demais, mas sinto uma decepção por nunca ter vestido a camisa do Grêmio. Passei minha infância no Olímpico, desde os três anos. Meu pai me levava ao estádio. Éramos sócios. Depois joguei na base, mas nunca fiz uma partida oficial. Estive perto de ser contratado pelo Grêmio há alguns anos, mas não aconteceu. Paciência. Não tenho do que reclamar.
Fundador e um dos líderes do Bom Senso FC, o seu discurso é, ao mesmo tempo, lúcido e realista.
- Dizem que o futebol é violento, mas a sociedade brasileira é pacífica? Dizem que o jogador não tem instrução e é superficial, mas o brasileiro médio é letrado e intelectual? O nosso futebol é um reflexo do país. Vale a mesma lógica para o jogador de futebol enquanto categoria, e aí entra o Bom Senso. O brasileiro é individualista e passivo.
Pergunto se estamos longe de testemunhar o que já aconteceu na Argentina, onde os capitães dos times se reúnem e param o campeonato por atraso salarial ou mortes em brigas de organizadas. Ele é objetivo e não hesita, como todo bom goleiro:
- Não. Falta muito ainda. Mas a semente está plantada.
Prass renovará por dois anos com o Palmeiras nos próximos dias. Almeja passar dos 40 na ativa. Ainda ouviremos falar muito desse gaúcho, um sobrevivente da Era Danrlei.
*ZHESPORTES