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Salários atrasados, grupo rachado e um presidente de clube com ares de ditador acabaram com a carreira de um jovem lateral-esquerdo. Foi esse o cenário encontrado na Romênia por Rafael Kneif. E foi demais para ele. Após uma batalha judicial que o impediu de seguir carreira no Brasil, decidiu abandonar os campos. Aos 25 anos, hoje trabalha em São Paulo como técnico e mixador de áudio.
– O que eu passei mostrou uma cara diferente do futebol para mim. Naquele momento, vi o quanto os jogadores não consagrados estão soltos – lembra o agora ex-jogador.
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A aventura de seis meses de Rafael no Leste Europeu teve início em 2015. Com passagem pelas categorias de base de Flamengo e São Paulo, havia subido para o time principal no Coritiba, clube em que foi campeão paranaense. Quando veio a proposta do Ceahlaul, da Romênia, estava prestes a assinar contrato com o Londrina.
– O Campeonato Romeno é forte, e o time era mediano. Havia uma boa possibilidade de brigar por uma vaga nas competições europeias – explica.
Não demorou para que Rafael percebesse que havia entrado em uma fria. Recebeu apenas metade do primeiro salário e, depois, o dinheiro cessou. Os atletas então se dividiram em dois grupos: um, liderado principalmente por romenos, não quis mais treinar em protesto. Só aparecia para jogar. Rafael fazia parte dos que seguiram trabalhando. A sobrevivência era garantida pelas economias e por alguma ajuda enviada pela família.
Além de viver as dificuldades de um ambiente de trabalho carregado, típico de um vestiário rachado, Rafael diz que se enojava com a postura do presidente do clube. Afirma ter testemunhado atos de racismo do dirigente cometidos contra outros jogadores. A gota d’água no relacionamento entre os atletas e o clube viria com a demissão do técnico, o brasileiro Zé Maria, ex-lateral de Palmeiras e Inter de Milão.
Com a saída do treinador, o grupo de que Rafael fazia parte desistiu dos trabalhos. O lateral seguia aparecendo no clube e tentava se manter em forma, mas a queda de rendimento da equipe foi inevitável. No meio do ano, retornou ao Brasil para as férias e, consciente das dificuldades do Ceahlaul, já havia decidido não retornar à Romênia.
A legislação protege jogadores que não recebem em dia. Após três meses sem salários, eles podem se desvincular do clube. Só que o Ceahlaul acionou Rafael na Justiça comum por abandono de emprego. O processo impediu que o contrato fosse anulado e, assim, o lateral não podia assinar novo vínculo com clubes brasileiros que demonstraram interesse em contar com seu futebol.
Refugiado na casa da família, em Sorocaba (SP), Rafael não vislumbrava saída para a situação. Decepcionado, decidiu que precisava tomar outro rumo. Os tribunais da Fifa só decidiram em seu favor no início deste ano. Tarde demais.
Amante de música desde criança, Rafael encontrou o novo caminho operando mesas de som. Diz não se arrepender da decisão, ainda que sofra pressão para retornar:
– Os meus amigos, alguns familiares, olham para o meu passado com pena por eu ter decidido parar, porque viam que eu tinha potencial como jogador. Tem esse olhar, de que não deveria ter parado. Me perguntam se eu não gostaria de voltar... Mas não tenho arrependimento. A caminhada é difícil, ainda mais conhecendo o mundo que é o futebol. Me agrada uma nova carreira, consigo ter tempo para estudar mais, para crescer. Posso ir nessa carreira até 50, 60, 70 anos.
Salários atrasados também na Sérvia
A reportagem de ZH fala com o zagueiro Edson Silva, ex-São Paulo, por telefone. A primeira pergunta é sobre as dificuldades que passou na Sérvia, onde defendeu o Estrela Vermelha. A resposta, quase constrangida, denuncia como foram pesados os cinco meses por lá:
– Complicado falar sobre isso. Não gosto muito de ficar relembrando...
O caso de Edson Silva mostra como é difícil prever onde haverá problemas para um jogador brasileiro atuando no Exterior. Ainda que a Sérvia seja um mercado periférico, o Estrela Vermelha é o mais tradicional clube do país – foi campeão europeu e do mundo em 1991. Só que, assim como ocorre muitas vezes no futebol brasileiro, os gigantes também passam por dificuldades financeiras.
Verdade que, antes de os salários atrasarem, o zagueiro já sentia problemas de adaptação. Brincalhão, não conseguia se enturmar, brecado pela barreira da língua. A situação se agravava pela tristeza da família, que também se sentia fora de lugar na fria Belgrado, de costumes tão diferentes dos brasileiros. A mulher, grávida de sete meses, tinha tantas dificuldades com a nova vida quanto o marido.
Vieram, então, os problemas financeiros do Estrela Vermelha. Para fins de pagamento, o mês já tinha bem mais de 30 dias e, apesar das explicações e dos pedidos de desculpas dos dirigentes, o zagueiro brasileiro se inquietava. A situação só não se transformou em drama porque os quatro anos atuando pelo São Paulo, antes de ele se jogar na aventura europeia, deram segurança financeira suficiente para suportar a tempestade.
A falta de salários transformou uma situação complicada em insustentável. Junto com seus representantes, Edson Silva acertou a rescisão. Elogia o clube por ter, ao menos, quitado a dívida após o fim do contrato.
Aos 31 anos, hoje no Londrina, ele olha para trás e vê em sua precipitação um dos motivos para o que sofreu. Destaca que seu vínculo com o São Paulo tinha se encerrado havia dois meses e estava ansioso para assinar com o próximo clube. A vontade de conhecer o futebol europeu o fez aceitar a proposta sérvia sem pestanejar, algo que classifica como equívoco.
– Não são todos os times da Europa que te dão uma garantia. Foi uma decisão muito precipitada, tomada sem ter tanto conhecimento do lugar, do clube. A primeira coisa que apareceu, eu cresci um pouco os olhos para cima e não procurei pensar na situação e buscar mais informações – reconhece.
* ZH Esportes