A devolução do inquérito sobre a morte de dois jovens em uma abordagem da Brigada Militar (BM), na madrugada de 16 de março, em Bento Gonçalves, expõe a falta de qualidade das investigações que dependem de provas técnicas.
Para o Ministério Público (MP), o indiciamento de dois policiais militares e um rapaz não tem embasamento para uma denúncia porque deixa muitas dúvidas (ver abaixo). Por esse motivo, a Polícia Civil retomará alguns depoimentos e o Instituto-Geral de Perícias (IGP) se comprometeu a encaminhar o resultado de perícias fundamentais para esclarecer o caso.
A contradição a esse emaranhado de perguntas em Bento é a apuração sobre o desaparecimento e morte do menino Bernardo Uglione Boldrini, em Três Passos. Tão logo o indiciamento de três pessoas foi anunciado nesta semana, o MP avaliou o inquérito e encaminhou as denúncias à Justiça. Isso só aconteceu porque os esforços estavam concentrados na solução de um crime que abalou os gaúchos. Dedicação semelhante não ficou visível na apuração das mortes de Anderson Styburski, 16 anos, e Danúbio Cruz da Costa, 20.
Uma das maiores dificuldades é encontrar o dono do revólver Rossi calibre 38 encontrado junto aos corpos dos rapazes no baú de uma Fiorino. Explicar a procedência da arma supostamente usada pelos ocupantes do veículo é essencial para indicar se houve excesso dos brigadianos ou se a reação policial se tratou de legítima defesa. Mas a investigação da Polícia Civil esbarrou na própria burocracia e na reconhecida dificuldade do IGP em concluir perícias - são pelo menos duas pendentes e outras duas que serão solicitadas pelo MP.
Mesmo sem a resposta da perícia para afirmar se houve confronto, o delegado Becker optou pelo indiciamento por homicídio por dolo eventual (quando se assume o risco de matar sem intenção) dos PMs Edegar Júnior Oliveira Rodrigues e Neilor dos Santos Lopes, além do motorista da caminhonete, Tiago de Paula.
A conclusão apresentada no final de abril, porém, não possui informações fundamentadas em dados técnicos, segundo questionamentos encaminhados pelo promotor de Justiça Eduardo Lumertz. E quanto maior o tempo entre o fato e a coleta de provas, mais complicado é definir a culpa e o grau de participação de envolvidos mais adiante.
Diretor do Departamento de Polícia do Interior (DPI), o delegado Mário Wagner ameniza:
- Devolver um inquérito com pedido de mais diligências é absolutamente normal. O ponto de vista de um policial pode ser diferente de um promotor. Se o delegado se convencer de que é possível indiciar alguém mesmo sem elementos técnicos não há problema. O MP pode achar ao contrário. Faz parte dos procedimentos.
As novas diligências solicitadas pelo promotor Lumertz serão comandadas pela delegada Deise Ruschel. A policial responderá temporariamente pelo 2º Distrito Policial pois o delegado Álvaro Becker está de licença até o final deste mês.
AS PENDÊNCIAS
Não explica a origem do revólver apreendido dentro da Fiorino
O revólver Rossi calibre 38 é peça importante para esclarecer se houve excesso por parte dos PMs. Os dois policiais militares envolvidos sustentam que um dos quatro ocupantes da Fiorino carregava uma arma, mas não souberam apontar qual deles. O motorista do veículo e o outro adolescente que estava na carona negam a posse da arma. A perícia encontrou o revólver Rossi calibre 38 com dois projéteis deflagrados dentro do baú da Fiorino, próximo ao corpo de um dos rapazes mortos.
A numeração do revólver coincide com dois registros no sistema de armas, o que é considerado algo inusitado. Na prática, haveria duas armas com o mesmo registro. Também não há ocorrência de furto, roubo ou perda de um dos artefatos.
Por que é importante: localizar os donos dos revólveres com a dupla numeração é essencial. Eles poderiam explicar se repassaram uma das armas para alguém em Bento Gonçalves. Confirmando a origem, a polícia ou o MP podem esclarecer como a arma foi parar dentro da Fiorino e tentar estabelecer se os rapazes estavam mesmo armados ou se alguém colocou o revólver de propósito. Caso contrário, durante um possível julgamento, haverá dúvidas se os rapazes da Fiorino reagiram mesmo a uma abordagem da Brigada Militar.
Onde parou: a Polícia Civil declarou ter identificado o dono de um dos registros. Esse proprietário é de Santa Cruz do Sul e afirmou aos investigadores ter vendido o revólver em 2003 para um homem que trabalhava em Portão. Cinco possíveis compradores foram identificados e quatro negaram a aquisição. O quinto seria um pastor que mora na Amazônia. A polícia ainda não encontrou esse homem e não designou agente da cidade para encontrá-lo pessoalmente. Para ouvir essa testemunha importante, a investigação depende de apoio de delegacias daquele Estado. O dono do segundo registro é de Santa Catarina, mas já morreu. A polícia também não informou por que os familiares do falecido não foram ouvidos antes da conclusão do inquérito. A fabricante Rossi, de São Leopoldo, disse ao Pioneiro que não foi procurada formalmente para se manifestar sobre o registro duplo e portanto não pode emitir declarações.
Há versões diferentes para fuga e abordagem
O motorista da Fiorino, Tiago de Paula, afirma que fugiu da Brigada Militar porque temia ser multado por transportar passageiros no baú. Em determinado momento, ele tentou escapar por uma rua íngreme, mas a Fiorino patinou no chão batido, voltou de ré e bateu na viatura da Brigada Militar. Os PMs, porém, dizem que Tiago jogou o veículo contra a viatura de propósito e, neste momento, um dos ocupantes da Fiorino atirou contra eles. Isso teria provocado a reação dos PMs, que atiraram de volta e atingiram Anderson Styburski e Danúbio Cruz da Costa no baú.
Por que é importante: a perícia já constatou que não foram disparados tiros do baú da Fiorino, onde a arma foi encontrada. Mas é possível que o motorista ou o passageiro tenham atirado contra os PMs por alguma abertura, a partir da cabine. Tiago e o adolescente disseram ter fechado os vidros durante a perseguição, o que tornaria impossível disparar. Contudo, a perícia afirma que a janela do carona foi encontrada totalmente abaixada e a do motorista, parcialmente. O veículo também foi remexido antes da perícia, mas não se sabe por quem.
Onde parou: a polícia dependia de exames residuográficos para detectar vestígios de pólvora nas mãos de Tiago, do carona da Fiorino e dos mortos. Se positivo, o resultado evidenciaria o confronto alegado pelos PMs. Esse exame ainda não foi concluído, mas pode ficar prejudicado porque o carona tomou banho antes de a prova ser coletada. Outro agravante: os laudos estão inconclusos porque o equipamento do Instituto-Geral de Perícias (IGP) está estragado e não há prazo para remessa dos laudos. Além desses exames, o Ministério Público pede a reconstituição do caso para entender melhor como foi a fuga e a abordagem.
De qual arma partiram os tiros fatais
Os PMs Edegar Júnior Oliveira Rodrigues e Neilor dos Santos Lopes admitem ter disparado contra a Fiorino em legítima defesa, mas não ficou claro de qual arma saíram os tiros fatais. Neilor usava uma espingarda e Edegar, uma pistola.
Por que é importante: no processo penal, é essencial determinar a participação de cada envolvido nas mortes para evitar injustiças. As penas poderão ser diferenciadas, uma vez que apenas um dos PMs pode ter provocado as mortes.
Onde parou: a investigação da Polícia Civil esbarrou na perícia da balística. Ao indiciar os dois policiais pelo mesmo crime (homicídio por dolo eventual), o delegado Álvaro Becker não esclareceu o grau de participação de cada um deles, deixando essa tarefa para o Judiciário. A Corregedoria-Geral da Brigada Militar aguarda o exame para definir no inquérito policial militar se foram os projéteis da espingarda ou da pistola que mataram Anderson e Danúbio. O MP também questiona o IGP sobre a potencialidade lesiva das armas de fogo apreendidas.