
O 20 de janeiro de 2012 é identificado pela estudante Liziane Guedes da Silva, 25 anos, moradora do Jardim Leopoldina, em Porto Alegre, como o "Dia da Mudança". Na data, a então recepcionista de hospital viu o próprio nome entre os classificados no curso de Psicologia da Ufrgs, que naquele ano foi o segundo mais disputado - com 19 candidatos por vaga.
Com a mesma perspectiva de Liziane, o estudante caingangue Josias Loureiro de Mello, 27 anos, trocou a vida entre plantações de milho e feijão na aldeia Pinhalzinho, em Planalto, no Norte do Estado, em 2011, pelo curso de Pedagogia na universidade.
Na terceira e última reportagem sobre o programa de ações afirmativas na Ufrgs, o Diário Gaúcho apresenta as mudanças que a iniciativa segue causando no meio acadêmico.
Incentivo para o início
- A lágrima escorria, e eu seguia dizendo para ele que, a partir dali, as coisas iriam mudar - recorda Liziane sobre o momento em que ligou para o pai, o porteiro Carlos Roberto da Silva, 54 anos, anunciando que seria a primeira da família a ingressar numa universidade federal.
Moradora do Jardim Leopoldina, na Zona Norte da Capital, Liziane admite que tentou o vestibular após ser estimulada por duas amigas. Formada técnica em Magistério, ela jamais pensou que conquistaria uma das vagas:
- Infelizmente, eu entendia que estar numa universidade federal não era algo para mim. Pensava que só poderia chegar ao ensino superior privado.
Para não fazer feio na primeira tentativa, Liziane optou por um curso pré-vestibular mais barato, pago com cheque em dez vezes.
- Eu tinha que passar porque ficaria pagando o cursinho até abril, três meses depois do vestibular - recorda, aos risos.
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Admiração pelos inteligentes
Josias, ao contrário, enfrentou a desconfiança dos mais próximos quando disse que disputaria a vaga em Pedagogia após tentar Odontologia no ano anterior. Foi a mulher, Denize Letícia Marcolino, primeira indígena a se formar na Ufrgs, em 2012, quem o incentivou ao curso.
- O que mais ouvi dos conhecidos foi "vai fazer outra coisa!". Mas eu estava decidido a seguir carreira na educação, porque sempre admirei pessoas inteligentes - confessa Josias.
"Eu não desisti"
O modelo de cota social (egressos de escola pública) e subcota racial para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas, adotado pela Ufrgs no ciclo 2008-2012, permitiu que, no vestibular de 2013, a universidade mantivesse o percentual de 30% sobre o total de vagas. Neste ano, o percentual foi alterado para 40%. Em 2016, chegará a 50% das vagas, atendendo à exigência da Lei das Cotas.
A favor da legislação vigente, Liziane diz que as ações afirmativas são uma política pública que deveria ter sido feita há 127 anos, quando a escravidão foi revogada.
- Desde pequenos, somos condicionados a perceber o lugar do negro em espaços subalternos. A pessoa não se sente pertencente àquele espaço (a universidade). Porque é isso que o racismo faz. Ele te bota de canto, te faz sofrer. Tentar o vestibular é te expor a mais uma situação de sofrimento. Mas não desisti e me candidatei a uma vaga nas cotas raciais - conta, orgulhosa, Liziane.
"Sou a favor das ações afirmativas por dar chances aos indígenas de ganharem conhecimento para, depois, levá-lo às aldeias. Ao mesmo tempo, se tivesse investimento na educação na própria aldeia, não precisaríamos de ingresso diferenciado."
Josias Loureiro de Mello
"O ingresso do aluno que é diferente do aluno branco enriquece a universidade. Porque as vivências que eu tive na minha vida por ser negra, por ser mulher negra, por ser mulher negra de periferia, são diversas de qualquer outra pessoa que está lá dentro."
Liziane Guedes da Silva
"Você chega lá no meio e percebe que tem condições. É só se dedicar e persistir que a gente consegue."
Taís Leite, engenheira cartógrafa e ex-cotista formada na Ufrgs
Estudo mostra preconceito
O distanciamento entre determinados professores e alunos cotistas foi percebido pela pedagoga Fernanda Nogueira, que concluiu neste semestre o Mestrado em Educação na Puc-RS. Fernanda analisou as cotas raciais no curso de Medicina da Ufrgs, o mais disputado da universidade. A partir de entrevistas com nove professores, destacou as mudanças nas dinâmicas em sala de aula, nas práticas pedagógicas e no pensar dos professores.
O estudo indicou ainda que as cotas seguem com professores contrários, como na fala de um dos entrevistados: "A universidade é um ambiente elitista, (...) para os melhores cérebros. Estamos ocupando as poucas vagas que temos com pessoas menos preparadas".
Outro professor entrevistado relatou situações de preconceito e discriminação no curso de Medicina e revelou que evita o embate para não gerar mais desconfortos: "Não é uma lei que muda, não muda! Piora! Eu vejo, com muita pena, alunos de origem africana que são sempre segregados. (...) Eles não conseguem acompanhar a aula, então eles ficam no cantinho nas aulas e, quando esse grupinho faz perguntas, geralmente, são muito simples."
Fernanda identificou que as próprias práticas realizadas no curso iniciam processos de "segregação dos diferentes". Como relata outro entrevistado: "É tradição o professor pegar a lista de chamada e olhar assim: João, você é parente do José? Sim, é meu pai (...). Daí o sobrenome do cotista é Silva ou Kaingang, ou sei lá o que, né (...)".
Ao tomar conhecimento da dissertação, a coordenadora de Ações Afirmativas da Ufrgs Luciene Simões disse que não comentaria o estudo por não ter lido a pesquisa. Mas destacou que segue acreditando no programa:
- Levo muita fé que eles (cotistas) terão capacidade de se renovar e de conseguir enfrentar qualquer dificuldade.
Evolução também ao redor
Josias, que está dando aulas numa escola pública da Zona Norte da Capital no estágio obrigatório, sente que, com a universidade, mudou o pensamento.
- Percebo que faço parte de uma nova geração de indígenas. Não estamos perdendo a nossa cultura. Estamos agregando algo novo - ressalta ele, que pretende voltar para a sua aldeia, a Pedras Brancas, em Ronda Alta, Norte do Estado, após concluir o curso.
Liziane considera que ainda não tem dimensão da mudança na própria vida porque ainda não se formou. Mas garante perceber uma onda de transformações no núcleo familiar. Sua mãe, a diarista Claudenice da Silva, 53 anos, começou a cursar à distância um curso técnico em Qualidade. O irmão, Lucio da Silva, 30 anos, ingressou numa universidade particular para cursar Marketing.
E até o cabelo de Liziane mudou depois que ela entrou na Ufrgs: deixou de alisá-lo, prática que fazia desde os 12 anos, para assumir os cachos.
- Meu posicionamento político-ideológico, a minha identidade negra e a minha consciência negra mudaram muito. Tive acesso a espaços majoritariamente brancos e eu me percebi sendo uma das únicas dentro destes lugares. O aluno cotista está no "entre". Eu não sou igual às minhas primas, que não fizeram universidade, e eu não sou igual aos meus colegas, porque existem constituições diversas. Eu saio da periferia, vou, adquiro conhecimento e volto para a periferia.
Mudanças na Ufrgs
Conforme a coordenadora Luciene Juliano Simões, a política de ações afirmativas da Ufrgs não se resume a receber alunos cotistas. Ela reconhece que é um caminho ainda em transformação e que os próprios estudantes ajudarão a universidade a promover as mudanças necessárias.
Com a criação das cotas, os 93 cursos da universidade precisaram se adaptar para a chegada dos novos estudantes. Só a partir de 2013, as comissões de graduação dos cursos da Ufrgs passaram a ter acesso à informação de quais estudantes são cotistas. Algumas comissões - como as de Administração, Agronomia, Biomedicina, Comunicação Social, entre outras - mantêm contato direto com os alunos para controlar o desempenho e também com os que apresentam dificuldades nos estudos. Os cursos de Ciências Biológicas, Direito, Educação Física, Geografia, Fisioterapia, Medicina e Nutrição acompanham os indígenas por meio de professor tutor.
Desde 2013, os cotistas dos cursos de Biomedicina, Medicina, Nutrição e Odontologia e os indígenas com renda per capita não superior a um salário mínimo e meio passaram a ter direito a uma bolsa de auxílio de R$ 400 e de R$ 900 (indígenas e quilombolas).
As Ações Afirmativas
* O processo de ações afirmativas teve início na Ufrgs em 2008/1, quando matricularam-se 531 alunos por meio de reserva de vagas, sendo 88 autodeclarados negros, 434 egressos do ensino público e nove alunos indígenas.
* Em 2008/2, matricularam-se 795 por meio da reserva de vagas, sendo 167 autodeclarados negros e 628 egressos do ensino público.
* A taxa de ocupação de vagas dos autodeclarados negros na Ufrgs aumentou de 44% das vagas disponíveis em 2008 para 77,9% em 2014, sendo uma das maiores taxas de ocupação de vagas das universidades brasileiras nessa modalidade.
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Josias está estagiando em sala de aula
Foto: Tadeu Vilani

Liziane está feliz com o curso que escolheu
Foto: Tadeu Vilani

Josias voltará para a mulher Denize, que segue morando na aldeia Pedras Brancas, em Ronda Alta, assim que concluir o curso
Foto: Tadeu Vilani
