
Nas 11 rodadas do Brasileirão até aqui, tivemos 86 jogos que não terminaram empatados. Em apenas um, Corinthians 2x0 Santos, houve igualdade na posse de bola. Nos outros 85, o time que teve menos posse triunfou 49 vezes, contra 36 da equipe que passou mais tempo com a bola no pé. Quase uma goleada do futebol sem bola. Sintomático.
Desde a ascensão meteórica do Barcelona de Guardiola e as cópias, fidedignas ou não, que o sucederam, olhar para a estatística de posse de bola tornou-se uma obsessão. Ninguém mais ignora esse número. É saudável, mas provocou uma distorção nas análises. Ter mais a bola, para muitos, virou significado de jogar bem, de ser superior ao adversário. Nem sempre é assim. Esse olhar exagerado para a posse ignora, inclusive, uma tendência que se espalha desde 2013, quando o Bayern de Jupp Heynckes demoliu o Barça, então comandado por Tito Vilanova, nas semifinais da Liga dos Campeões. O futebol de transições rápidas, de contra-ataques, esse modelo que não faz questão de ter a bola no pé por tanto tempo, reagiu ao período de cerca de quatro anos em que foi totalmente dominado.
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De 2008 a 2012, espalhou-se o estilo de longas trocas de passes e movimentação para abrir espaços na defesa adversária. O revolucionário Barça de Pep ensinou o segredo para chegar ao gol, antes protegido por sistemas de marcação que pareciam intransponíveis. Foi um saudável sopro de ar fresco após décadas e décadas de total domínio do futebol de transições. Nos anos 1990 e 2000, o que se via era uma batalha de contra-ataques em jogos muito velozes, mas pouco técnicos. O perfil dos meio-campistas desses tempos denuncia: não bastava jogar bola, era preciso guerrear. Nomes como Ballack, Gerrard e Lampard, todos de ótima qualidade, só tinham espaço porque aliavam força física e imposição ao talento. Baixinhos habilidosos e criativos como Xavi e Iniesta, nem pensar.
O Barça de Guardiola recuperou o futebol propositivo, de valorização da bola, como alternativa competitiva. O modelo passou a dominar: aquele time ganhou duas Ligas dos Campeões em quatro anos, a Espanha venceu duas Eurocopas e uma Copa do Mundo – na decisão de 2010, bateu uma Holanda montada sob os mesmos conceitos. Ter mais posse de bola virou sinônimo de vencer. Não é mais assim.
Na Copa de 2014, a Alemanha com estilo Pep foi campeã, mas Argentina e Holanda, montadas para o contra-ataque, foram longe. Isso sem falar na competente retranca da surpreendente Costa Rica. Na última Eurocopa, Portugal deu a bola para quase todos seus adversários. Planejou para brecar cada um deles. País de Gales, outra sensação do torneio, foi no mesmo caminho. O Chelsea de Antonio Conte é outro belo exemplar do modelo.
O cenário atual é dividido. A revolução de Guardiola ainda vive na Alemanha campeã do mundo e na proliferação das ideias de Marcelo Bielsa, um dos treinadores que mais teve influência sobre Pep. A seleção chilena e o Tottenham vice-campeão inglês são totalmente "bielsistas". Há ainda Jurgen Klopp no Liverpool, um meio termo com sua marcação alta para tomar a bola, mas que, feito o desarme, parte em direção ao gol sem paciência para longas tramas. Do outro lado, expoentes de um futebol mais reativo, como Diego Simeone e o já citado Conte, que esperam o adversário, tiram espaços e apostam na velocidade. Representam uma recuperação do modelo que dominou nas décadas passadas, mas evoluído: quem gosta do contra-ataque entendeu que ele tem de ser organizado e lúcido. Só assim para enfrentar times tão habilidosos no manejo da bola como os que seguem a corrente de Pep. Desse contraste de estilos nasce um período riquíssimo, bem mais interessante do que o monólogo do contra-ataque que vivemos antes.
A posse de bola não é, portanto, um número que mede se o time está bem ou mal em campo. Apenas é um indício de qual sua proposta de jogo. Só uma observação criteriosa de outros aspectos pode determinar se essa ideia é bem executada ou não.
É natural que, no Brasil, exista alguma dificuldade dos times que querem ficar mais com a bola. É um modelo que exige trabalho de longo prazo. Tem de se azeitar movimentos coordenados e fazer os jogadores entenderem os padrões de deslocamento para que sempre haja opções de passe curto disponíveis. Bem mais complexo do que negar espaços e escapar em velocidade. Mais complicado ainda se considerarmos que o técnico, por aqui, trabalha com a certeza de que dois, três resultados negativos resultam em demissão sumária. Melhor, então, "fechar a casinha".
Está aí um dos mais perversos efeitos dessa mania maluca dos dirigentes, capazes de demissões injustificáveis como a de Vagner Mancini na Chapecoense. Somos privados, com raras e honrosas exceções, de assistir ao confronto de estilos que foi responsável, em 2014, por produzir uma das melhores edições da história das Copas do Mundo.
* ZH Esportes