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Se tem coisa de que economistas gostam de verdade, mais do que gráficos e numeros, é uma boa discussão filosófica. O secular debate entre liberais e marxistas, para muitos superado, ganhou novo fôlego com a publicação de O Capital no Século 21, do economista francês Thomas Piketty. Em menos de um ano, o autor conseguiu duas proezas que o alçaram ao estrelato: disputa com clássicos da literatura o topo no ranking de livros mais vendidos nos Estados Unidos e deixou em lados opostos duas das mais respeitadas - e alinhadas na defesa de ideias liberais - publicações de economia do planeta, ambas britânicas, a revista The Economist e o jornal Financial Times.
O livro chegou às prateleiras no momento em que o tema inquieta os ricos. Depois da crise que atingiu Europa e Estados Unidos há cinco anos, o tema da desigualdade social deixou de ser restrito a economias mais atrasadas e se tornou um problema também de países desenvolvidos. Em estudo realizado com outros 10 pesquisadores, Piketty não se ateve a dados atuais. Fez um levantamento histórico da distribuição da riqueza nos últimos 300 anos.
Mesmo não se declarando marxista, o francês chegou a conclusão idêntica à do teórico alemão quase 150 anos antes: o capitalismo amplia a desigualdade, beneficia herdeiros de fortunas e prejudica a ascensão social. Com isso, o francês sacudiu o consenso estabelecido. Com acesso a informações antes indisponíveis, vai além ao apontar que a desigualdade está aumentando e ao defender taxação sobre grandes fortunas - uma canção de mau gosto a ouvidos afinados aos acordes do liberalismo.
A obra não passou impune pelo editor de economia do FT, Chris Giles, que acusou Piketty de ter errado cálculos ou torturado os números até que eles confessassem o que o pesquisador queria. A cavalaria em defesa do francês veio em peso: dois vencedores do prêmio Nobel de Economia, Paul Krugman e Joseph Stiglitz, além da revista The Economist, não viram motivo para tanta desconfiança. Apesar de reconhecer o trabalho árduo do economista francês e ver certo exagero na posição do FT, o professor da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Elerry, que devorou as 900 páginas da versão em inglês do livro de Piketty, ressalta que a tese de que a desigualdade aumenta quando a taxa de juro é maior do que a do crescimento da economia não se aplica a todos os casos.
- Existe pelo menos um caso onde isso não ocorre, o Brasil. Isso não desqualifica o trabalho, mas exige cuidado com generalizações. O próprio autor me parece bastante modesto e reconhece isso em vários trechos do texto. O exagero me parece muito maior por parte de alguns leitores - observa Elerry.
Dilma sustenta que Brasil está na contracorrente
A obra de Piketty foi citada até pela presidente Dilma Rousseff, que afirmou, na quinta-feira passada, que o Brasil "está na contracorrente" mundial ao diminuir as diferenças entre os mais ricos e os mais pobres.
-Somos um país que reduziu a desigualdade - discursou a presidente.
A análise de Piketty se focou em 20 países, especialmente os Estados Unidos e os da Europa. O Brasil, segundo o autor, ficou de fora por falta de dados e transparência. Para Monica de Bolle, economista e responsável pela tradução para o português da obra que, no original em francês, tem mais de 500 páginas, é natural que haja controvérsia sobre números e fontes consultadas.
É mais uma ironia: Monica dirige o centro de estudos conhecido no Rio de Janeiro como Casa das Garças, considerado um difusor do pensamento neoliberal no Brasil.
- Isso não exime Thomas Piketty de explicar algumas inconsistências que o FT encontrou nos dados que o autor disponibilizou para todos na internet. Mas será mesmo que suas conclusões sobre os rumos que a economia global parece estar tomando nesse início de século 21 ficam invalidadas? - questiona Monica.
Quem é
Com currículo impecável, Thomas Piketty virou estrela ao publicar O Capital no Século 21 aos 42 anos. É um "garoto" se comparado a outros colegas de profissão de renome internacional. O francês entrou na École Normale Supérieure aos 18 anos. Quatro anos depois, concluiu sua tese de doutorado sobre a teoria da distribuição de riqueza. Depois de lecionar por anos no Instituto de Tecnologia de Massachussetts (MIT), umas das mais renomadas universidades do planeta, retornou à França, decepcionado com o pouco empenho dos americanos para coletar dados históricos sobre renda e riqueza.
O que sustenta
Desigualdade aumentou
Quando a taxa de juro é maior do que o crescimento da economia, cresce a desigualdade. A lógica parte da suposição de que o juro representa a taxa de crescimento do capital. Se o capital cresce mais rápido do que a renda como um todo, então a riqueza dos capitalistas fica maior do que a renda dos trabalhadores.
Imposto sobre fortunas
O economista defende uma taxação global sobre a riqueza real (menos dívida). No Brasil, a Constituição de 1988 prevê um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) nunca regulamentado e, portanto, jamais instituído. Desde a década de 1970, o mundo discute a adoção desse tipo de instrumento, até hoje sem sucesso.
O que se diz dele
Chris Giles, editor de economia do Financial Times
Os dados (...) contêm uma série de erros que distorcem suas descobertas. O FT encontrou erros e entradas inexplicáveis nas planilhas, semelhantes aos que no ano passado prejudicaram o trabalho sobre a dívida pública e o crescimento de Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff.
The Economist
Com base nas informações que Giles (editor de economia da Financial Times) tem proporcionado até agora, no entanto, a análise não parece apoiar muitas das alegações feitas pelo FT ou a conclusão de que o argumento do livro é errado.
Paul Krugman, nobel de Economia em 2008
Parece seguro dizer que O Capital no Século 21, obra-prima do economista francês Thomas Piketty, será o mais importante livro de economia do ano - e quem sabe da década.
David Harvey, professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova York, um dos marxistas mais influentes da atualidade
O que Piketty mostra estatisticamente é que o capital tendeu a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Além disso, essa é exatamente é a conclusão teórica de Karl Marx no primeiro volume de O Capital.
Dilma Rousseff, presidente da República
Piketty acha que taxar todo mundo é um grande fator de convergência (entre ricos e pobres). Outro que ele cita é a educação. Eu prefiro a educação.
"O capitalismo tem imperfeições"
Uma das diretoras da Casa das Garças, centro identificado com ideias neoliberais, Monica de Bolle está traduzindo para o português o livro de Piketty, que chega às livrarias em novembro pela editora Intrínseca.
Por que a obra de Piketty causa alvoroço?
É inevitável que o tema distribuição de renda e de riqueza gere este tipo de comoção. É um ponto que toca a vida das pessoas e, portanto, um tema sobre o qual todo mundo se interessa. O fenômeno Piketty nos Estados Unidos é ainda mais interessante porque se trata de um livro de economia, que em geral não atrai tanto interesse, e escrito por um francês. Nos EUA, o assunto ficou ainda mais evidente após a crise de 2008 porque ficou nítido que hoje é um país menos igualitário do que já foi no passado, e um pedaço grande da classe média encolheu em razão da crise. O pós-crise e a percepção de que as coisas se tornaram de certo modo mais injustas explica esse fenômeno.
O livro é complexo ou de fácil leitura?
O texto é muito bem escrito. Apesar de denso e um pouco técnico, pode ser lido por qualquer pessoa, não precisa ser especializado em economia. Usa exemplos da literatura universal e de filmes contemporâneos para ilustrar certos pontos.
Do ponto de vista político-econômico, a senhora se identifica com a obra?
O livro tomou uma conotação de esquerda que na verdade não tem. Vivemos em um mundo de patrulhas ideológicas, tanto à direita quanto à esquerda. No Brasil, isso é atenuado, mas também há. É um livro que simplesmente discute coisas que afetam as sociedades. Os sistemas econômicos, sejam quais forem, têm conduzido a concentrações de riqueza. É fato. Não tem ideologia.
Não é uma crítica direta ao capitalismo?
É uma constatação feita sobre uma análise muito detalhada. Não podemos ser ingênuos a ponto de achar que nossas sociedades não têm problemas. Não dá para achar que se as coisas funcionam sozinhas, sem regulação. Os mercados nos EUA, sem controle, explodiram e quase arrastaram o resto do mundo. Capitalismo sem regulação não funciona. Já é consenso. Não é argumento nem de esquerda, nem de direita. O livro só aponta que o capitalismo tem imperfeições, limitações. Se me identifico com essa posição? Sim, claro.
Então, resumir a obra à velha discussão liberais versus marxistas é um erro?
É uma idiotice sem tamanho. Muitos dos marxistas sequer leram Marx. Os liberais progressistas nos EUA de hoje são considerados a "esquerda". Paul Krugman é um liberal progressista, visto como uma pessoa de esquerda.
Tem muita gente comentando a obra sem ter lido o livro, é isso?
Sim. O debate sobre Piketty no mundo e com especial intensidade no Brasil hoje está um pouco assim: gente concordando com o que ele não disse e gente discordando do que ele não disse.
Como avalia as supostas falhas apontadas pela Financial Times?
São irrelevantes para o conjunto da obra. Série de dados de qualquer natureza tem defeitos. A série do PIB brasileiro não é perfeita, apesar de o IBGE fazer um bom trabalho. Uma coisa é o conceito, outra é a métrica. Não é fácil medir o PIB de um país. O mesmo vale para dados de riqueza e renda. Ainda mais construindo séries que voltam 300 anos no tempo, que exigem ajustes para permitir comparações. É óbvio que alguns ajustes são arbitrários, como em qualquer trabalho acadêmico dessa natureza. Acho que o Financial Times foi extremamente infeliz ao tentar desqualificar uma obra importante em um momento em que essa discussão se torna tão relevante para o mundo.