Economia

Impacto no Brasil

Calote ameaça negócios com a Argentina

Se não entrar em acordo com credores até quarta-feira, o principal parceiro comercial do Brasil poderá mergulhar em uma nova moratória

Caio Cigana

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Um passo separa a Argentina do abismo de uma nova bancarrota, com consequências que devem respingar do lado de cá da fronteira. Caso não entre em acordo com seus credores até esta quarta-feira, o país vizinho terá sua situação configurada como um default técnico - falta de parte de pagamento da dívida - por agentes financeiros internacionais.

Mesmo que o calote seja parcial e involuntário, ao contrário de 2001, quando foi total e decidido pelo governo, o cenário tende a deixar a economia local ainda mais combalida, incentivar uma fuga maior de dólares e ampliar a dificuldade de financiar as importações.

Com o default confirmado, a Argentina deve comprar ainda menos do Brasil e do Rio Grande do Sul, diminuindo o ritmo já baixo em virtude das barreiras impostas pela Casa Rosada, projetam especialistas. Como o país vizinho é o principal destino das exportações da indústria nacional e gaúcha, o calote embute o risco de ampliar a crise nas fábricas brasileiras devido ao desaquecimento da economia doméstica.

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Mesmo com a recente renovação de um acordo entre os dois países, um dos setores que deve ser prejudicado é a indústria automobilística, avisa José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). Cerca de 85% das exportações nacionais são exatamente para a Argentina e, por falta de competitividade, o país não tem mercado alternativo para onde enviar o excedente. E as razões vão além do financiamento às importações.

- Com um default, vai aumentar o desemprego na Argentina, o poder de compra da população é reduzido e, por consequência, cairá a importação. Haverá ainda desvalorização cambial, o que faz com que o cenário piore - alerta Castro.

Na Federação das Indústrias do Estado (Fiergs), a orientação é de que as empresas diminuam a dependência da Argentina, tradicional compradora de máquinas agrícolas, calçados e alimentos do Estado. Um dos temores é vender e não receber.

- Pode haver um prejuízo enorme, que agravaria a situação da indústria gaúcha porque a Argentina é o principal destino de manufaturados - avalia Cezar Luiz Müller, coordenador do Conselho de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Concex) da Fiergs.

Mesmo sem calote, as exportações para a Argentina tiveram forte retração no primeiro semestre na comparação com igual período do ano passado. Os embarques do Brasil caíram US$ 1,91 bilhão, o equivalente a 20,5%, e os do Rio Grande do Sul, 22,7%, ou US$ 191,3 milhões.

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Contágio financeiro deve ser menor

Ex-embaixador na Argentina e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), Marcos de Azambuja avalia que não existem outros riscos ao Brasil, como uma instabilidade no câmbio, por exemplo. E mesmo que considere a nova crise mais um golpe no Mercosul, não vê risco de o mercado financeiro internacional confundir a situação argentina com a brasileira.

- Quem investe sabe onde estão as oportunidades e os riscos. Há uma sofisticação muito grande dos operadores internacionais. Não há mais esta confusão. Todos sabem que a capital do Brasil não é Buenos Aires - lembra Azambuja.

Rodrigo Zeidan, professor de economia da Fundação Dom Cabral (FDC), entende que o maior impacto do default da Argentina não será uma queda mais expressiva das exportações, mas sim uma demora maior para o país vizinho retomar o nível anterior de comércio com o Brasil. Outro tipo de consequência, avalia o professor, deve ser descartado.

- Pode até haver contágio comercial, mas não financeiro. O Brasil está com grau de investimento (melhor avaliação de risco) e mais de US$ 300 bilhões em reservas. E a Argentina não tem acesso ao mercado de capitais desde 2001 - compara Zeidan.

Exemplo do passado traz alerta

O tamanho da repercussão de um novo default na economia argentina e os reflexos para o Brasil e Rio Grande do Sul ainda são uma incógnita, mas os efeitos da moratória do início da década passada dão uma pista. Após o calote anunciado em dezembro de 2001, as exportações para o principal parceiro do Mercosul despencaram no ano seguinte.

As vendas brasileiras para a Argentina caíram 53% em 2002. Para o Estado, o resultado foi ainda mais drástico, com redução de 64%. A decisão do governo de não pagar US$ 102 bilhões da dívida externa pública levou a Argentina a protagonizar o maior calote da história.

Para Marcos de Azambuja, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), desta vez o impacto do default não teria a mesma dimensão e a retração no comércio também não seria tão acentuada. Em 2002, o PIB argentino caiu 10,9%. Apesar da retração de 0,8% no primeiro trimestre deste ano, a previsão do Banco Mundial, por enquanto, é que Argentina fique estagnada em 2014.

- Não vejo uma réplica do colapso de 2001. Hoje, a Argentina está muito menos amarrada, como no caso da paridade entre o peso e o dólar - compara Azambuja.

Conversa a 40 minutos do segundo tempo

A 24 horas de um novo descumprimento de obrigações com credores, o governo argentino admite a possibilidade de moratória, mas tenta transmitir tranquilidade. Representantes do Ministério da Economia viajaram a Nova York. Vão se reunir com o mediador Daniel Pollack, designado pelo juiz federal Thomas Griesa, com o objetivo de tentar uma saída para que os fundos especulativos recebam o pagamento determinado pela Justiça dos EUA sem mergulhar a Argentina em nova crise. Segundo Pollack, haverá uma reunião nesta terça-feira, mas o encontro "cara a cara" pedido às duas partes só ocorrerá no dia em que vence o prazo final.

- Os argentinos precisam estar tranquilos, porque a vida continua - afirmou o chefe de Gabinete Jorge Capitanich, porta-voz da presidente Cristina Kirchner.

A presidente, por sua vez, vai para Caracas, onde nesta terça ocorre uma reunião de cúpula do Mercosul. Viaja acompanhada do ministro da Economia, Alex Kicillof, em meio à preocupação dos demais países do grupo sobre os riscos de novo calote argentino para a região. Nesta segunda, o chanceler argentino, Héctor Timerman, pediu aos demais parceiros apoio na disputa com os fundos abutres e na criação de uma proposta para reformar o sistema financeiro internacional.

- É fundamental que assumamos conjuntamente a liderança necessária para impulsionar as adiadas reformas do sistema financeiro internacional. A ação dos fundos 'abutres' (especulativos) nos devem mobilizar a todos para trabalhar de maneira decidida, conjunta e coordenada para uma profunda reforma - afirmou Timerman.

Apesar do apelo de Timerman, o chanceler brasileiro, Luiz Alberto Figueiredo, não fez nenhuma menção ao impasse argentino com seus credores. No discurso feito logo após, Figueiredo preferiu enfatizar a necessidade de um acordo entre o Mercosul e a União Europeia e elogiar a volta do Paraguai como membro pleno do bloco.

Prenúncios da tempestade

2001
Em dezembro, a Argentina deu um calote no pgamento de sua dívida pública, então de US$ 102 bilhões.

De 2005 a 2010
Mais de 90% dos credores aceitaram negociar com a Argentina e receber valores inferiores aos originais de forma parcelada. O desconto chegou a 70% sobre o valor original. Os cerca de 10% restantes não quiseram renegociar. Alguns venderam títulos da dívida para fundos especulativos, agora chamados de fundos abutres.

2012
Um dos fundos, o NML, venceu disputa judicial com a Argentina na Justiça dos EUA. A dívida chegaria a US$ 1,33 bilhão. Para complicar a situação, a Justiça americana determinou que a Argentina só poderia pagar as parcelas da dívida renegociada se também acertasse com o NML.

2014
A Argentina recorreu à Suprema Corte dos EUA. Em maio deste ano, a decisão foi novamente contrária ao país, com a confirmação de que deveria pagar os fundos.
O impasse leva ao risco de a Argentina ser arrastada para um novo calote, mesmo que, desta vez, involuntário e parcial. Em busca de uma solução, uma comissão enviada pela Casa Rosada tem hoje uma reunião com o mediador nomeado para o caso.

Se não surgir um acordo até amanhã, as agências de classificação de risco podem colocar a Argentina em situação de default seletivo (calote parcial). Em 30 de julho vence o prazo para pagar os credores que renegociaram suas dívidas. A Argentina depositou o dinheiro, mas a Justiça americana exige que os fundos também recebam.

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