Rafael L. Kasper
Escritor, doutorando em Filosofia pela UFRGS
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Quando entrei na van que ia de Kiev a Bila Tserkva, na Ucrânia, eu esperava encontrar somente árvores e um vazio no fim do trajeto. Estava quente, a van não tinha janelas, apenas vidros por onde se viam prédios retangulares e simétricos, típicos da arquitetura soviética, e outdoors coloridos e espalhafatosos, típicos do capitalismo pós-soviético. Eu só estava naquela van por dois motivos. Primeiro, porque meu amigo Eli Dubnov, um israelense nascido na União Soviética, estava comigo, e, falando russo, ele descobrira o trajeto e comprara as passagens. Segundo, porque um ano antes, em Porto Alegre, eu havia lido Perpetrators, Victims, Bystanders, de Raul Hilberg.
No capítulo 5, Zealots, Vulgarians, and Bearers of Burdens, Hilberg volta a Bila Tserkva de agosto de 1941. Era o início da Operação Barbarossa, a invasão alemã à URSS, durante a qual os nazistas emitiram as "Linhas Gerais para a Conduta das Tropas na Rússia". O documento, circulado secretamente entre as tropas e as milícias nazistas no leste, determinava o extermínio de comissários do partido comunista, agitadores e judeus (vistos pelos nazistas como agentes do bolchevismo). Eu já havia lido o bastante para saber que o extermínio coletivo começou antes de Auschwitz e Treblinka, e que, aliás, Auschwitz e Treblinka só foram concebidos por causa do que aconteceu antes, principalmente nos territórios tomados da URSS. Mas o que aconteceu em Bila Tserkva ("Igreja Branca") condensa a violência nazista no que ela teve de mais surpreendente e, portanto, de menos compreensível.
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Foi a primeira vez em que tive de parar minha pesquisa sobre totalitarismo por dias, até me recuperar. Após exterminarem quase todos os 800 judeus da cidade, os nazistas encontraram 90 crianças judias escondidas num prédio. Os primeiros soldados que chegaram ao lugar sentiram um odor insuportável. Viram crianças desidratadas, algumas em estado comatoso, aguardando pelo retorno de ninguém, pois seus pais, mães e avós tinham sido fuzilados por membros do Sonderkommando. Depois de uma reunião envolvendo homens da SS, da administração civil e do exército no local, num processo de decisão característico da burocracia totalitária, em que a pró-atividade de oficiais locais e os imperativos ditados pelos oficiais de Berlim derrubavam todo pedido de moderação (no caso, de dois capelães e de um tenente-coronel do exército), os "pequenos Hitlers e Himmlers" da área escolheram, como passou a ser regra a partir de 1941, a opção mais radical (o "mal maior", nas palavras do historiador Timothy Snyder): exterminar as crianças.
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Compreender não é justificar, dizem historiadores, mas como compreender que quem disparou naquelas crianças não foram os homens da SS, mas voluntários ("policiais de ajuda") ucranianos? Lembro de um amigo, numa mesa de bar em Berlim, me falando o seguinte: "Eu consigo compreender os alemães, pois eles foram ideologizados, mas não consigo compreender os ucranianos (e poloneses, e romenos etc.) que fizeram por diversão". O problema é que os ucranianos voluntários de Bila Tserkva não fizeram por diversão. Hitler chamou os territórios ucranianos de "Jardim do Éden", e viu ali um campo fértil para o seu colonialismo racial. Por isso, procurou explorar os sentimentos de ucranianos oprimidos durante a ocupação soviética, lhes prometendo uma liberação nacional. Os ucranianos queriam mostrar serviço político, e justamente um serviço contra judeus, adversários étnicos, apresentados pelos nazistas como agentes da NKVD (a polícia secreta comunista) e do bolchevismo em geral.
Mas eram 90 crianças. Se a explicação dá conta de certa perspectiva histórico-política dos ucranianos, ela deixa de lado o aspecto mais incompreensível, o da filosofia psicológica. Boa parte dos grandes pensadores ocidentais, mesmo aqueles separados por séculos e por contextos diferentes, como Platão, Kant, Freud, nos ensinou que as inclinações corporais, que as paixões, as tentações e os impulsos costumam ser fonte de engano, de transgressão moral, de pecado; e que a racionalidade, a noção de dever, as exigências da consciência colocariam freio no nosso pendor à violência e ao desregramento. Os voluntários ucranianos, porém, eram um caso da inversão moral que Hannah Arendt descreveu, referindo-se a homens que aprenderam a resistir à tentação a não matar. Antes de fuzilar as crianças (que gritavam e choravam, agrupadas perto de árvores), os ucranianos, empunhando espingardas, tremiam. Seus corpos, seus instintos lhes diziam que aquilo era errado, que aquilo era um crime, mas os imperativos de suas consciências políticas lhes diziam para seguir em frente e apertar o gatilho.
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Creio que nenhum aspecto da história seja falsificado pelo meu relato: os perpetradores eram voluntários, não alemães, não nazistas, não pagos nem forçados. Eles mataram pelas determinações de um superego político, pela ilusão de liberação nacional, por uma mistura de ressentimento, dever e sacrifício, alimentados por fabricações ideológicas (a percepção de que judeus eram agentes bolcheviques só poderia ser obtida com recorte seletivo e grosseiro da realidade factual). O caso perturbou até mesmo o primeiro-tenente da SS no local, que confessou em seu diário, anos depois: ele nunca mais conseguira dormir direito ao se lembrar da menina que, um pouco antes de ser fuzilada, lhe deu a mão.
Naquela van quente e apertada, cujo tapa-sol era adesivado com uma bandeira da Ucrânia, eu não esperava compreender algo novo. Eu queria estar naquele Éden hitlerista, para chegar a um envolvimento real e profundo com uma história que era bem mais do que um caso de pesquisa. Quando eu e meu amigo Eli chegamos a Bila Tserkva, percebi também que nenhuma conclusão edificante poderia se aplicar àquela história particular e à história em geral: porque lá nos esperava Natalia, diretora da atual escola judaica – e lá, onde eu esperava encontrar árvores e ausências, havia crianças judias abrigadas em salas, alimentadas e educadas, enquanto crianças não judias brincavam em colônia de férias no pátio da mesma escola.
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Isso seria suficiente para especular sobre uma superação de tempos sombrios, não fosse o relato de Natalia sobre a vida da pequena comunidade judaica no interior da Ucrânia de 2016. Natalia nos levou ao cemitério judaico, nos mostrou os vidros blindados, colocados depois de apedrejamentos antissemitas há poucos meses. Ela também nos mostrou o prédio onde as crianças ficaram alojadas em 1941, e disse que a prefeitura local aceitou construir um memorial, desde que seja mencionada, na placa comemorativa, apenas que "90 crianças foram mortas", sem referência à identidade das vítimas e dos assassinos. Em certas partes do Leste Europeu, a história continua a ser manipulada pela política, certamente com propósitos menos radicais, mas claramente com a intenção de ofuscar o que foi este jardim onde, nos anos 1930 e 1940, milhões de pessoas foram presas, deportadas e fuziladas em nome de ideias. Ali, naquele Éden cinzento e sangrento, a inocência se perdeu não por causa do pecado, mas por causa do dever politicamente organizado. Essa constatação, que não era nova para mim, apenas se tornou mais sufocante naquela van apertada e quente percorrendo a estrada entre Kiev e Bila Tserkva.
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