
É superior a 4 mil quilômetros a distância que separa Porto Alegre da Venezuela. Ainda assim, surge na capital gaúcha um núcleo de venezuelanos que deixaram seu país com a dor de quem não pode mais ficar. Os refugiados estão longe de ser os milhares que atravessam a fronteira e chegam a Roraima, mas já se organizam em uma rede, com não mais de 20 pessoas, para se ajudarem e prepararem o acolhimento de outras.
Um exemplo é o da família de Blas Pacheco, 46 anos. Ele tem o Ensino Médio, fez dois semestres de Administração de Empresas e, especialista em eletrônica, vive de biscates. Pacheco é casado com a médica Dulce Suárez, 41 anos, que renovou recentemente seu contrato pelo programa Mais Médicos.
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Com os dois, no bairro Belém Velho, vive Blas David Pacheco Dávila, 21 anos, filho de Pacheco (com a ex-mulher, que vive ainda em Caracas) e bartender no Barra Shopping Sul.
Caracas é local de origem de muitos recém-chegados
O curioso é que o garoto Dávila foi acolhido pela família, mas quem lhe estendeu a mão foi outro venezuelano, Alfredo Ortega, 25 anos, garçom no mesmo local.
– Eu perguntei se ele (Ortega) conseguiria um emprego para mim. Ele viu se havia vagas, e havia. Estou trabalhando ali há três meses. Sou eternamente agradecido – diz o jovem.
Ortega está no Brasil desde 2010 e se dispõe a ajudar aquele que se tornaria um grande amigo.
– Vocês não têm ideia da situação que vivemos na Venezuela.
Se o Brasil está em crise, lá é muito pior. Contamos para as pessoas, aqui, mas ninguém consegue entender o que virou nosso país – diz Ortega.
Ele conheceu a mulher quando ela trabalhava como supervisora no Circo Tihany, em Caracas. Os dois se casaram e tiveram uma filha em agosto de 2010. A família está adaptada a Porto Alegre. Para melhorar de vida, ele já cogita estudar Direito, faculdade que chegou a cursar durante um semestre na Venezuela.

Também em razão do Mais Médicos, vive em Porto Alegre a enfermeira Rinoa Acosta, 42 anos, mãe de dois filhos. Ela vai ficando, pelo menos enquanto a situação na Venezuela estiver no atual quadro de desabastecimento de 80% dos produtos da cesta básica, inflação anual estimada em 720%, violência comparável à de países em guerra, presos políticos e caos institucional, de ruptura entre os poderes.
– O que ocorre no nosso país precisa ser conhecido por todos. Estão matando as pessoas – comenta Rinoa, em tom de súplica para ter o apelo amplificado e relatando casos de pessoas que têm câncer e, em razão da falta de medicamentos, deixam de se tratar, restando-lhes esperar a metástase e a morte.
A maioria dos venezuelanos na Capital veio de Caracas. Angel Palma, 31 anos, é uma exceção. Já agregado ao grupo depois de contatos pelas redes sociais, deixou sua Puerto Ordaz e foi a Manaus. Lá, tinha uma prima, mas a cidade estava saturada de compatriotas. Um policial federal o aconselhou a tentar a sorte no extremo sul, e ele pensou: “Por que não?”. O problema foi antes, na saída da Venezuela. Como ele tinha R$ 400 em notas de 250 mil bolívares, os policiais venezuelanos pararam-no quando tentava entrar em Roraima. Como a fronteira iria fechar, ele teve de deixar o dinheiro para só então conseguir sair do país.
– R$ 400 é valor muito alto para um venezuelano – queixa-se.
Miguel Serve Cadevilla, 27 anos, é outro que veio a Porto Alegre por ter contatos na cidade. Conheceu um amigo porto-alegrense pelo Facebook e não se arrependeu de aceitar o convite para vir:
– Muita gente dizia que seria uma loucura, uma aventura. Mas loucura é ficar lá, naquela situação terrível.
Paixão pela dupla Gre-Nal já divide os caribenhos
Zero Hora conversou com o grupo de venezuelanos na segunda e na terça-feira. O momento de distensão ocorreu ao se falar de futebol. A maioria é gremista. A exceção é Rinoa, que optou pelo Internacional.
– Você sabia que o dono do time que vem jogar aqui, o Zamora, é irmão do Hugo Chávez (ex-presidente venezuelano, morto no cargo em março de 2013)? – pergunta Blas Pacheco.
– Vocês então vão torcer pelo Grêmio (o jogo seria na quinta-feira e terminou com vitória gremista por 4 a 0)?
– Ah, mas os jogadores são venezuelanos – atalhou a colorada Rinoa, já no clima da rivalidade local.
As risadas pelas provocações mútuas são um hiato em meio a tantas lembranças amargas.
O grupo se une, mesmo, ao comentar a existência de pelo menos 55 mortos e mil feridos nos protestos contra o presidente Nicolás Maduro. Os xingamentos ao mandatário que se mantém no poder apesar de ter entre 70% e 80% de rejeição, chegam em coro. A palavra mais usada, aos gritos, é “asesino”, em espanhol.
Maduro estabelece neste momento as bases de uma constituinte que será implementada sem o voto direto. O referendo revogatório – espécie de recall no meio do mandato – foi abortado pelo governo, e as eleições para governador, que ocorreriam no final do ano passado com todas as pesquisas indicando derrota do partido de Maduro, foram canceladas. Em tese, está agendado o pleito presidencial para o final de 2018.
– A constituinte vai ser um golpe para nos tirar as eleições. Não sabemos qual a saída para o nosso país, o que será do futuro. Vivemos aqui e estamos todos muito bem. Fomos muito bem acolhidos. O Brasil é um país maravilhoso, que sabe tratar as pessoas vindas de fora. Vamos ficando – comenta Blas Pacheco.
