Do lado de fora, tudo calmo.
A Rua Santo Antônio mal tinha prédios, a classe média se dividia entre casas robustas e o trânsito era um sossego. Movimento maior, talvez, em alguma padaria. E também no casarão amarelo de número 600, próximo à Avenida Independência. Nada que chamasse a atenção da vizinhança no Bom Fim de 1964 - ano em que os militares botaram João Goulart para fora e assumiram o governo do Brasil -, porque o casarão trocava sempre de inquilinos. Antes, por exemplo, vendiam-se ali produtos de beleza. Era normal algum entra e sai de carros.
Do lado de dentro, o clima era outro.
Só os militares - e seus aliados, entre policiais e informantes - sabiam dos presos políticos que se amontoavam no subsolo. Só eles sabiam que, no casarão, funcionava um órgão de inteligência do novo regime. Tratava-se de um aparelho fora da lei, criado propositalmente à margem da estrutura oficial do Estado. De certa forma, portanto, aquele lugar não existia.
"Contra a força, não há resistência", diz ex-prisioneiro do Dopinha
Leão de Medeiros, delegado que pavimentaria uma sólida carreira no período de exceção, ainda frequentava a Escola de Polícia:
- Nós sabíamos que, na Santo Antônio, havia uma filial dos órgãos de informação. Mas não tinha existência legal naquilo. Os militares criaram uma coisa clandestina.
Por que fizeram isso? Para ninguém vê-los, diz a historiadora Susel Oliveira, autora da tese de doutorado Violência Policial em Porto Alegre entre os Anos de 1960 e 1990 :
- Era um espaço mais livre para interrogar, para torturar, para fazer o que bem entendessem. Quem entrava ali perdia sua identidade, ficava desprovido de qualquer direito.
Ou seja, nenhuma família mandaria advogados pressionarem por habeas corpus em um local desconhecido. Ninguém sabia por onde andavam os presos. Os agentes da ditadura apelidaram o casarão de Dopinha. Era um diminutivo de Dops - sigla para Departamento de Ordem Política e Social -, este sim, um órgão oficial que funcionava no Palácio da Polícia. Como o Dops era uma estrutura da Polícia Civil, o Dopinha foi a forma encontrada pelos militares de assumir o comando repressor.
- Naquele tempo, ninguém fazia nada no Dops sem ordens do Dopinha. Quem mandava era o casarão da Santo Antônio - atesta o jornalista José Mitchell, que escreveu o livro Segredos à Direita e à Esquerda na Ditadura Militar.
Morte de sargento pôs fim ao Dopinha
A existência do Dopinha veio à tona em 1966, quando o célebre Caso das Mãos Amarradas expôs a violência do regime. Não havia censura à imprensa - ela só viria em 1968, com o AI-5 -, então os jornais destacaram com ímpeto a morte do sargento Manoel Raymundo Soares, 30 anos, um líder contestador do golpe. Seu corpo foi encontrado boiando no Rio Jacuí com as mãos atadas.
Durante a investigação do Ministério Público e da CPI aberta na Assembleia, concluiu-se que o chefe do Dopinha seria o principal responsável pela morte do sargento, torturado por cinco meses antes de morrer. O major Luiz Carlos Menna Barreto, apontado como mandachuva, foi denunciado com uma série de policiais. Mas a alegação da Justiça foi "falta de provas", e o caso segue impune até hoje.
Depois da morte do sargento, o Dopinha foi extinto. O casarão amarelo retornou aos donos - uma estrutura clandestina precisava de um imóvel particular, não podia ser do próprio Estado. ZH localizou o proprietário atual, um empresário de 36 anos que pediu sigilo de identidade. Ele herdou a casa do pai, mas o pai morreu quando ele era criança. Não sabe dizer, portanto, como o casarão chegou aos militares. Só ficou sabendo há 10 dias que o Dopinha operou ali, quando um grupo protestou adesivando a calçada da Santo Antônio.
- Essa casa envolveu uma disputa entre meu avô e meu tio-avô, dois irmãos que brigaram. Sempre ouvi histórias ruins relacionadas a ela, e agora fico sabendo disso. É muito triste - lamenta o proprietário, que tenta há seis meses vender o imóvel por R$ 2,1 milhões.
Capital vai apontar locais de tortura
Na próxima terça-feira, o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, assinará um convênio com o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) para identificar locais que abrigaram tortura durante a ditadura militar (1964-1985).
A iniciativa, batizada de Marcas da Verdade, já tem uma lista de pelo menos sete localidades - o casarão onde funcionava o Dopinha, na Rua Santo Antônio, está no topo da relação. A ideia é fixar placas no chão, em frente aos antigos centros de tortura, substituindo uma ou duas lajotas por breves históricos a respeito dos locais.
- Já está acertado com o consórcio que venceu a licitação para revitalizar o Cais Mauá: lá será colocada uma placa em referência à Ilha do Presídio, listando os nomes de todos os presos. Eles embarcavam por ali - diz Fortunati.
O convênio é uma iniciativa do fundador do MJDH, Jair Krischke, que há dois anos vinha pressionando a prefeitura. Ele já contabiliza 80 presos que passaram pela Ilha do Presídio. Outro locais a serem identificados, além do Dopinha e da ilha, são o Palácio da Polícia - onde funcionava o Departamento de Ordem Política e Social, o Dops - e a Praça Argentina, perto do viaduto da Avenida Duque de Caxias, onde foi o Quartel da Polícia do Exército.
- Queremos que as placas digam claramente: aqui, brasileiros foram torturados - afirma Krischke.
Enquanto a prefeitura não começa as identificações - o prefeito prefere não estabelecer prazos -, o Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça já iniciou o trabalho por conta própria. Coordenado pelo vereador Pedro Ruas (PSOL), o grupo mobilizou um protesto em frente ao antigo Dopinha, no último dia 10, quando fixou adesivos na calçada em frente à residência. Em letras garrafais, oito adesivos informam: "Aqui nessa rua pessoas foram torturadas e mortas durante a ditadura militar no Brasil".
O comitê se baseia em um decreto do presidente Lula, que já determinava a identificação de locais onde presos foram torturados na ditadura. Na próxima quinta-feira, o grupo vai adesivar a calçada do Palácio da Polícia, antiga sede do Dops.
- Nós temos um critério: nos baseamos em três depoimentos e um documento para fazer a identificação. O quartel na Rua Luiz Afonso, entre a João Pessoa e a Lima Silva, também receberá nossos adesivos - adianta Pedro Ruas.
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