Quem se dispõe a um passeio virtual pelo Google Earth ou Google Maps ao longo da fronteira Brasil-Uruguai depara, nas proximidades de Santana do Livramento, com uma linha pontilhada no mapa, em forma de triângulo invertido. É território brasileiro? Não, dizem os uruguaios. É território uruguaio? Negativo, rebatem os brasileiros que ali residem. Aquele recanto perdido do Cone Sul da América é zona de disputa secular entre os dois países. É área de conflito, caracterizada nos mapas da mesma forma que a Faixa de Gaza, território palestino encravado em região reivindicada por Israel.
No caso da fronteira Uruguai-Brasil, a área em disputa está distante dezenas de quilômetros da cidade mais próxima. Pudera, é vergastada de forma inclemente pelo Pampeiro, vento sudoeste, que torna a região quase inabitável - lar de muitas ovelhas e povoada por escassos seres humanos. São os gaúchos dos dois países, dotados de necessária fibra para enfrentar a natureza.
A linha geográfica imaginária abrange, de um lado, a vila uruguaia de Masoller. Ela é sinônimo de civilização modelo século 21: conta com três antenas de telefonia celular, lan-house com acesso à internet, telefonia fixa, clínica de saúde (com médico algumas vezes por semana) e estrada conectada à capital provincial, Rivera, por uma estrada asfaltada de qualidade, a mesma que leva a Montevidéu.
Basta caminhar alguns passos e atravessar a imaginária linha fronteiriça para o sujeito ingressar na brasileira Vila Albornoz. É como um mergulho no túnel do tempo até o século 19.A vila está ligada à matriz do município, Santana do Livramento, por 74 quilômetros de estradas pedregosas, esburacadas e que parecem trilhas de boi.
Ela não conta com sinal de celular (pelo menos, não o brasileiro), nem com lugar para acesso à internet. Tampouco dispõe de médico, posto de saúde ou guarnição policial. Proliferam no lado brasileiro, em contrapartida, vaqueiros a cavalo e fazendeiros em possantes caminhonetes.
Não que faça muita diferença. Além de se conhecer pelo nome, uruguaios e brasileiros das duas localidades partilham dos serviços por ali. Brasileiros compram e usam celulares uruguaios, caminhonetes uruguaias - que, pelo imposto reduzido, custam bem menos do preço cobrado no Brasil - e serviços de saúde daquele país.
Na falta de delegacia ou mesmo de um simples posto da BM, os brasileiros registram queixas criminais na Comissaria de Policia uruguaia. Uma providência prática, já que, a exemplo dos cidadãos de bem, os ladrões da região também são doble chapa: atuam nos dois lados da fronteira e, por vezes, têm documentos de ambos os países, por serem filhos de brasileiros com uruguaias e vice-versa.
- Já no lado brasileiro, se o sujeito morrer, tem de levar de contrabando para Livramento, por meio do asfalto no Uruguai. É que a estrada é tão ruim que o defunto estraga no caminho, se for pelo lado brasileiro - reclama o tropeiro Sílvio Paulo dos Santos, morador de Vila Albornoz.
Escola brasileira como alternativa
Uruguaios fazem compras no mercado do lado brasileiro, que é maior. Adquirem ovelhas em território gaúcho e, quando escasseiam vagas nas escolas do Uruguai, matriculam os filhos no grupo escolar de Ensino Fundamental Vila Albornoz.
- Sempre cabe mais um aqui, são só 16 alunos - explica a professora Marta Quevedo, que mora num alojamento dentro da própria escola e, aos finais de semana, revê a família em Santana do Livramento.
Muitos estudantes chegam a cavalo para as aulas, que têm horário especial: das 10h às 14h30min. É que, no inverno, é difícil para as crianças a locomoção. Do lado brasileiro,é raro passar carro nas estradas esburacadas, e acordar cedo, nos campos batidos pelo vento minuano e queimados pela geada,mais complicado ainda.
Se as necessidades de uma fronteira forjada em natureza hostil irmanaram brasileiros e uruguaios, alguns sinais mostram que, no fundo, a rivalidade persiste. A escrivã uruguaia Míriam Cuello Saravia, que trabalha num dos três juzgados (juizados) existentes em Masoller, diz que não se importa em atender a pedidos de naturalização por parte de brasileiros ou de casamentos no civil. Ela própria tem um filho e um neto brasileiros. Porém, quando apontam paraVila Albornoz como território brasileiro,dispara:
- Brasileiro, não.Território contestado, amigo, contestado...
Em frente ao juizado, do outro lado da rua, uma cisterna exibe letreiros que soam como aviso:
- Exército Brasileiro. Braço forte, mão amiga.
A vida em dois países
A confusa e amistosa relação entre os fronteiriços pode ser constatada no cotidiano do estancieiro Fábio Cabral. Brasileiro, ele próprio carrega na vida pessoal um pouco da história de Vila Albornoz: é casado com Ana Paula, filha de uma das fundadoras da vila,a fazendeira Regina Helena Albornoz, da família que doou terras privadas para fincar na fronteira com o Uruguai um vilarejo capaz de assegurar que, sim,aquilo lá é parte do Brasil.
Cabral circula numa caminhonete Hilux comprada por R$ 55 mil no Uruguai. Fosse no Brasil, teria pago R$ 85 mil. Em compensação, compra ração e vacina, mais baratas, num supermercado brasileiro. Arrozeiro, escoa a produção pelo território uruguaio,via asfalto.
- No lado brasileiro, onde administro a fazenda, levo 30 minutos para fazer seis quilômetros em função dos buracos da estrada - justifica.
Ele assinala que o posto de combustíveis em Vila Albornoz fechou, por falta de clientela. Pegar a estrada no lado brasileiro e ir até Santana de Livramento significa enfrentar uma jornada de três horas, capaz de quebrar a suspensão do veículo. Outra dificuldade é a comunicação, já que o telefone não pega, nessa área de sombras entre Vila Albornoz e a matriz, Livramento. A saída é usar telefone por satélite nas estâncias.
- Mas não troco isso aqui por nada. Apesar das dificuldades,é Brasil, o meu país - diz Cabral.
