
Para realizar estudos, durante muito tempo as universidades brasileiras dependeram de cadáveres que permaneciam sem identificação ou não eram reclamados nos institutos médicos legais. A reação veio nos últimos anos: instituições como a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) começaram a difundir no país a cultura da doação de corpos em vida.
"Você já pensou em doar seu corpo para a ciência?" A pergunta estampada em um pequeno cartaz na parede atraiu a atenção do vendedor José Alcione Lopes quatro anos atrás, durante uma visita à UFCSPA. Na mesma noite, no apartamento ao pé do campus, ele consultou seu companheiro, o técnico contábil Alexsandro Montanha. Recebeu o apoio que buscava. Estava de volta à universidade um ou dois dias depois, para conversar com uma assistente social e apanhar formulários. Na mesma semana, oficializou a doação em cartório.
Quando Lopes morrer, está acertado que seu corpo seguirá até Capela de Santana, a 59 quilômetros da Capital, para ser velado pela família. Encerrada a despedida, será embarcado em um veículo da UFCSPA e conduzido ao laboratório de anatomia. Ajudará estudantes de cursos como Medicina, Biomedicina, Fisioterapia e Psicologia a aprender sobre o corpo humano.
- Nós nascemos, vivemos e morremos. Depois da morte, não faz sentido deixar o corpo enterrado, sem utilidade, se ele pode trazer benefício para a sociedade - explica Lopes, hoje com 40 anos.
As universidades brasileiras dependeram durante décadas dos cadáveres que permaneciam sem identificação ou não eram reclamados por ninguém nos institutos médicos legais. Com o passar do tempo, essa fonte tornou-se escassa, prejudicando a formação dos profissionais.
A reação veio nos últimos anos: a Sociedade Brasileira de Anatomia e instituições como a UFCSPA começaram a difundir no país a cultura da doação em vida. Os brasileiros estão respondendo ao apelo. Depois de criar um programa, em 2008, a universidade da Capital viu a média de cadastrados a cada ano multiplicar-se de seis para 30.
Nos próximos dias, mais um nome vai se juntar à lista: o de Alexsandro Montanha. Desde menino, ele estava decidido a ser cremado e a ter suas cinzas espalhadas no mar de Torres. Quando Lopes revelou-lhe o desejo de doar o corpo, Montanha seguiu aferrado ao plano original. Pouco a pouco, foi mudando de ideia. O transplante de órgãos que salvou um amigo serviu de empurrão para a decisão. No fim do ano passado, na época em que oficializou em cartório o casamento de 12 anos com Lopes, o técnico contábil anunciou que também legaria o corpo.
- Até o ano passado, com 37 anos, minha ideia era ser cremado. À medida que fui conhecendo e entendendo, amadureci. Chegou um momento em que eu disse: vou fazer - relata.
Montanha e Lopes doarão seus corpos à universidade
Foto: Lauro Alves, Agência RBS

Outro casal doador - os aposentados Carlos Roque Calliari, 72 anos, e Maria Dóris Salinas, 62 anos - não quer velório antes de seguir para as aulas de anatomia. Maria Dóris escutou sobre o tema no rádio:
- Vi que em vez de estar no cemitério apodrecendo e sem serventia, eu podia ajudar. Falei com o Carlos, e ele tinha mais vontade ainda do que eu de doar.
Os dois visitaram a universidade e formalizaram a intenção há seis meses. O primeiro a morrer, combinaram, será entregue à instituição pelo outro. Calliari não quer velório para não dar incomodação. Maria Dóris, porque acha as exéquias deprimentes:
- Velório é um momento muito triste, sofrido.
O funcionário público Alexandre Leal Marques, 48 anos, ficou estupefato ao saber que estudantes tinham dificuldade de acesso a cadáveres durante a formação. Conversou com a mãe, com o pai, com a ex-mulher e com o filho - e oficializou a condição:
- Quero contribuir para a formação dos profissionais que vão cuidar do meu filho no futuro. Mas vão ter de esperar bastante. Pretendo chegar aos cem anos.
Ideia é implantar cultura já arraigada na Europa
Quando começou o curso de Medicina, há 20 anos, Andréa Oxley da Rocha aprendeu anatomia em um laboratório onde se oferecia um corpo para cada grupo de 10 alunos, o recomendado pelo Ministério da Educação. Teve a oportunidade de dissecar cadáveres e de conhecer as texturas dos tecidos, o tamanho dos órgãos e as relações entre as estruturas do organismo.
Em 2007, ao retornar ao laboratório na condição de professora, Andréa encontrou uma nova realidade. Os corpos eram escassos, e as oportunidades de dissecação, limitadas. Não se tratava de uma particularidade de sua instituição, a UFCSPA. Em todo o Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Anatomia (SBA), as faculdades passaram a sofrer com a carência.
A UFCSPA reagiu por meio de um programa de doações que está revertendo a escassez. Em menos de cinco anos, a universidade acumula 147 doadores cadastrados - 14 corpos desse grupo já chegaram ao laboratório.
- Como não fazemos campanha de convencimento, fica claro que as doações ocorrem por altruísmo. Graças a isso, estamos retomando as dissecações - explica Andréa.
Hoje existem no mercado bonecos para uso didático, mas o contato com corpos humanos reais é considerado imprescindível. Entende-se que, além de familiarizarem o aluno com as estruturas corporais e as variações anatômicas, os cadáveres também colaboram para a formação ética. Em seu material de divulgação, a SBA enfatiza a diferença com uma pergunta: "Você prefere ser operado por um cirurgião que aprendeu anatomia num boneco de plástico ou num corpo humano de verdade?"
Para não prejudicar os alunos, as universidades tentam implantar uma cultura já arraigada na Europa e nos Estados Unidos. O diretor do curso de Medicina da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), Léo Doncatto, testemunhou essa realidade durante treinamento em uma instituição norte-americana: praticou técnicas cirúrgicas em corpos doados. Neste semestre, a Ulbra oficializou seu programa de doações. Já tem quatro nomes na lista. Na UFRGS, são uma centena os que decidiram se deixar de herança para a ciência.
- Aqui essa cultura ainda está no início. Mas é uma questão de tempo. Quem doa córnea, rins e coração começa a ter consciência para, daqui a pouco, doar o corpo - acredita Doncatto.