- A minha casa era ali ó, tia.
O pequeno braço de Alanda Stephany, 10 anos, se estende em direção a um vazio tomado por restos.
Não combina, mas toda a delicadeza da menina insiste em mostrar o que um dia foi carro, móvel, casa e animal. Tanta ingenuidade agora aponta para um passado desbotado. Um cinza impiedoso, que ainda cheira a desgraça em toda a Vila Liberdade, em Porto Alegre.
Alanda dorme na rua desde o dia 27, quando o fogo desfez cerca de 90 moradias do local e deixou quase 200 famílias desabrigadas aos pés da Arena do Grêmio. Ela descansa em uma barraca improvisada, com lonas e tocos de madeira, no canteiro em frente ao local incendiado. As brincadeiras agora são em um nova casa que não tem portas, e que seria preferível que também não tivesse quintal - pois o que se vê adiante causa medo.
- Não piso aí dentro. Minha mãe me disse que o meu cachorrinho está ali morto. Eu tinha um gato também - conta a menina, como se fosse preciso.
A família de Alanda está entre cerca de 10 outras que não arredaram os pés do local. Diferentemente da grande maioria, eles não aceitaram o abrigo improvisado pela prefeitura no ginásio da Escola Municipal de Ensino Fundamental Antônio Giúdice, no bairro Humaitá. Como motivo, alguns têm os animais. Seria impossível levar os cavalos para dentro da escola. Outros permanecem como símbolos de resistência.
- Os que se mandaram para lá ficaram com medo de enfrentar a realidade. Mas eu estou aqui no relento para mostrar a minha luta pela vida. Pode chover, pode esfriar, fico doente, mas não desisto - diz a recicladora Valéria Sodré, 42 anos, à espera de um novo lar. Que há de ser construído no mesmo local do antigo.
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Conforto dos moradores é não ter perdido nenhum familiar
Os banhos estão mais raros. Quando é preciso ir ao banheiro, deslocam-se para a casa dos vizinhos que não foram atingidos pelas chamas. Comidas e roupas não faltam porque, diariamente, voluntários e moradores da região se revezam na ajuda às famílias que perderam tudo o que tinham.
Alanda ficou sem os cadernos, sem os lápis de cor e sem a mochila da escola. Vera Cordeiro, 40 anos, salvou apenas os documentos que estavam na bolsa. Paulinho Silva, sete anos, teve o pé picado por formigas que agora compartilham o colchão com ele. E para Leandro Senna, 40 anos, restou somente um sentimento. Aquele de quem não perdeu nada de importante:
- Chegava em casa quando vi, de longe, o fogo alto. Foram os 10 minutos mais longos da minha vida, até eu ter o prazer de encontrar minha mulher e meus quatro filhos com vida. Eu ainda tenho tudo.
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Projeto para condomínios verticais
A prefeitura apresentou ontem um projeto para a construção de condomínios verticais, de cinco pavimentos, entre a Rua Frederico Mentz, 65, esquina com a Diretriz, 660, e a Avenida Voluntários da Pátria, com capacidade para 600 famílias. No local seriam realocadas também aquelas atingidas pelo incêndio. A promessa é de que as obras comecem ainda neste ano.
- Esse local de ocupação irregular dará lugar a outro em que os moradores serão donos de seus imóveis - garante Everton Braz, diretor-geral do Departamento Municipal de Habitação (Demhab).
Enquanto isso, abrigadas em uma escola ou em barracas, as famílias cadastradas no Programa Integrado Entrada da Cidade e em cooperativas habitacionais são encaminhadas ao programa aluguel social e dispõem de um valor de R$ 400 para encontrar uma nova moradia, e cerca de 50 pedidos famílias manifestaram o interesse na instalação de casas ecológicas e provisórias no local.
A 4ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre aguarda o depoimento de uma moradora da vila para dar andamento às investigações. Ela é suspeita de ter ateado fogo no sofá de sala após brigar com o companheiro e está sumida.
Como ajudar
As famílias precisam de doações de produtos de higiene pessoal e de alimentação. Elas devem ser feitas no ginásio da Escola Municipal Antônio Giúdice ( Rua Caio Brandão de Melo, bairro Humaitá, Porto Alegre).
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