
A deposição do ex-presidente egípcio Mohamed Mursi abriu uma polêmica mundo afora: o que ocorreu no país árabe foi um golpe militar ou a continuidade da revolução que teve sua primeira explosão em 2011, com a queda do ditador Hosni Mubarak? Quem defende a tese de que se trata de um golpe lembra o fato de Mursi ter sido vitorioso em eleição direta e que o episódio abre precedentes perigosos de intervenção militar. Quem fala em revolução argumenta que há um aprofundamento da que se iniciou dois anos atrás. E tem ainda quem pense que o movimento egípcio é golpe e revolução, tudo ao mesmo tempo.
- Foram anunciadas medidas para a transição democrática. Não é um golpe militar clássico, mas um golpe dentro de um processo revolucionário - diz Arlene Clemesha, professora de História do curso de Árabe da Universidade de São Paulo (USP).
Arlene ainda afirma que os militares serviram como instrumento para uma espécie de impeachment:
- Se as instituições fossem sólidas no Egito, o povo não precisaria apelar aos militares para derrubar o presidente, que vinha fazendo um governo autoritário.
Juliana Castelo Branco, especialista em Oriente Médio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), segue a mesma linha, mas faz uma ponderação: o futuro vai definir se houve golpe ou revolução.
- Aparentemente, o discurso dos militares é o da reabertura do processo democrático - diz ela.
Juliana está convencida: a alternativa militar era a única que os egípcios tinham frente ao acúmulo de poderes sob crescente adoção de normas islâmicas.
- O processo democrático foi corrompido pelo próprio presidente. Se as manifestações continuassem, a repressão aumentaria e muito mais gente teria morrido. O que houve foi um impeachment.
Max Fisher, articulista do Washington Post, pondera que houve um golpe - e, ao mesmo tempo, uma revolução. E se diz preocupado com o precedente de a alternativa militar se tornar aceitável. "Os eventos de 3 de Julho foram um golpe ou uma segunda parte da revolução de 2011? A democracia foi expressa ou subvertida? A resposta é 'ambos'. Se o Egito vai lidar com essa transição muito melhor do que em 2011, isso provavelmente vai pedir que os dois lados das manifestações desta semana compreendam a amplitude de 3 de julho e como o país chegou a esse ponto (...)".
O governo que tomou posse ontem demonstra a preocupação em dar verniz de legitimidade ao novo regime egípcio. O embaixador do Egito nos Estados Unidos, Mohamed Tawfik, em entrevista à revista Foreign Policy, procurou esclarecer aos americanos:
- Não é um golpe. Os militares não assumiram o poder. O exército não iniciou o movimento, foi um levante popular. As forças armadas intervieram para evitar violência. Os militares não voltaram a controlar o Egito. Isso não está acontecendo e não acontecerá.
Esse, aliás, é o principal temor externo. Os EUA não chegaram a definir o movimento como golpe, mas se disseram preocupados com o que está por vir. A União Europeia pediu eleições o quanto antes. A maioria dos países do Oriente Médio tomou o fato como consumado e felicitou o presidente interino. São os casos de Arábia Saudita, Kuwait e Jordânia, além da Autoridade Nacional Palestina. Já a Turquia definiu como "inaceitável" a intervenção militar no país.
O Brasil se manifestou de forma semelhante à da Turquia. O Itamaraty definiu o episódio como "ruptura da ordem democrática", mas rejeitou a possibilidade de fechar a embaixada no Egito.
Argumentos pró e contra o possível golpe no Egito
Sim, é um golpe
- Apesar de ser intensamente criticado pela população, o agora ex-presidente Mohamed Mursi estava legitimado pelos votos. Mursi foi eleito no primeiro pleito realizado de forma democrática no maior país árabe. Era também o primeiro civil a governar o Egito. Venceu com 52% dos votos dos egípcios, que compareceram massivamente às urnas em junho de 2012, contra Ahmed Shafik, ex-premier de Hosni Mubarak, no segundo turno.
- Seu governo tinha reconhecimento internacional. Mursi conseguiu contornar desconfianças e já vinha sendo visto como um importante mediador em outras crises do Oriente Médio.
- Foi tirado do poder com um ultimato feito pelos militares em nome das aspirações da população que protestava nas ruas. Para isso, os militares tomaram conta de veículos de comunicação, colocaram tanques nas ruas e cercaram o palácio presidencial, atitudes típicas de um golpe.
- Mursi foi colocado em prisão domiciliar. Centenas de integrantes da organização Irmandade Muçulmana, que está integrada à vida política do país, foram presos.
- Os militares, antes da posse de Mursi, adotaram durante o período de transição amplos poderes, como a dissolução do parlamento eleito pela população e composto em sua maioria por integrantes da Irmandade Muçulmana.
- Retirar um presidente eleito representa uma ruptura com a ampla fatia da população que o elegeu e que, em muitos casos, apoia as medidas que ele implementou.
Não, é uma revolução
- Apesar das eleições de junho de 2012, o Egito ainda não podia ser considerado uma democracia plena.
- No decorrer de seu governo, Mursi adotou, crescentemente, medidas consideradas autoritárias e antidemocráticas. No final de ano passado, chegou a colocar seus poderes acima do controle judicial (voltou atrás, depois), e uma Comissão Constitucional considerada por muitos ilegítima elabora a toque de caixa uma nova constituição. O texto é criticado por cercear liberdades e islamizar o Estado.
- Os protestos que ocorreram na última semana foram considerados os maiores da história do Egito - em participação nas ruas, as manifestações foram consideradas ainda maiores que as da chamada Primavera Árabe. Milhões pediram a saída de Mursi no Cairo e em outras cidades do país. A oposição diz ter conseguido arrecadar 22 milhões de assinaturas - mais do que os votos recebidos por Mursi.
- O Senado também havia sido invalidado pela Justiça, no mês passado. O organismo, que historicamente não tinha poder, exercia o papel legislativo quando a Assembleia do Povo fora dissolvida por ordem judicial um ano antes.
- Os militares alegam ter apenas executado o desejo da população, que não teria outros meios de destituir o presidente, como um processo de impeachment, já que o país está sem instituições legislativas válidas que representem a população. Nesse caso, a multidão nas ruas e representantes de grupos da sociedade preencheram de alguma forma essa lacuna.