
Milhões ergueram a voz. Em uma enxurrada de reivindicações, cobraram educação, transporte público e saúde de qualidade, clamaram pelo fim da corrupção. A presidente Dilma Rousseff respondeu com cinco pactos, encabeçados pelo plebiscito da reforma política. Proposta que deixou no ar: a reforma, de fato, atende às prioridades das ruas?
A questão divide a própria base do governo. No PT, a consulta sofre questionamentos. Partido do vice-presidente Michel Temer, o PMDB defende a redução da Esplanada, composta pelo recorde de 39 ministérios. E os opositores criticam - dizem que o plebiscito é uma estratégia do Planalto para escapar dos problemas reais apontados pelas ruas.
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Especialistas também se dividem sobre a prioridade do plebiscito e da reforma, pautada em temas como financiamento de campanha, fim das coligações, voto proporcional ou distrital, fim da suplência no Senado e do voto secreto em cassações. Cientista político da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), João Feres Júnior considera importante o debate, mas acredita que a proposta foi apresentada em um "péssimo momento".
- A reforma surge num momento de negação da política. As pessoas ficam com a tendência de apoiar opiniões contra a representação política, o que enfraquece a democracia - ressalta ele.
Procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e pós-doutor em Direito, Lenio Streck alerta que, mais do que alterações no sistema eleitoral, a população cobra uma mudança de atitude dos políticos. Pressionado, o Congresso nas últimas semanas aprovou o uso dos royalties do petróleo na educação e saúde, derrubou a PEC que tirava o poder de investigação do Ministério Público, barrou o projeto da "cura gay" e aprovou a ficha limpa para servidores públicos. A agenda positiva, porém, não impediu desvios de conduta.
Os presidentes da Câmara e do Senado usam os aviões da FAB de forma indiscriminada. Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) levou a noiva e a família para a final da Copa das Confederações, enquanto Renan Calheiros (PMDB-AL) foi a um casamento. Para Streck, não adianta mudar o sistema se as práticas continuarem as mesmas, sem as devidas punições.
- Democracia se faz com instituições que funcionam. As pessoas querem uma resposta à impunidade, maior transparência na política - afirma ele.
Eleição não deve contaminar debate
Para o cientista político americano David Fleischer, professor da Universidade de Brasília (UnB), a melhor resposta da presidente aos protestos seria abrir as contas dos ministérios. Ele defende uma força-tarefa, composta por Ministério Público, Tribunal de Contas e Controladoria-Geral da União, para apurar e punir desvios no governo.
- Seria uma atitude contundente, mas iria desagradar a seu partido e a todos os aliados.
Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), o cientista político Fernando Lattman-Weltman destaca a importância de realizar a reforma, mas critica a pressa do governo. Apesar do tema estar no Congresso há quase duas décadas, ele considera precipitado trazer o eleitor para o debate público com a necessidade de tomar uma decisão rápida. Realizar a consulta este ano seria um erro, diz ele. O ideal seria deixar para depois das eleições de 2014.
- A reforma é boa, desde que seja feita com tempo e debate. Pautar a reforma com a próxima eleição é ruim para o país, já que vai contaminar a discussão por paixões partidárias - destaca Lattman-Weltman.
O historiador Francisco Teixeira apoia o plebiscito e a reforma, mas cobra do governo medidas de curto prazo. Teixeira acredita que o Congresso só aprovará a reforma política se for pressionado pelos brasileiros - nas ruas ou nas urnas.
- O Planalto foi sagaz de colocar o bode na sala do Legislativo. Mas Dilma precisa fazer política. Ela é a presidente, não a gerente do Brasil.
Relator da última tentativa de reforma política, engavetada em abril, o deputado Henrique Fontana (PT-RS) concorda com a necessidade de atitudes imediatas, como o corte de R$ 15 bilhões em gastos anunciados pelo governo. Contudo, o petista defende a realização das mudanças, mesmo que só possam valer para as eleições de 2016.
- Quem espera há 18 anos deve combater a sensação do deixar para depois. Já se discutiu demais a reforma. A pressão das ruas pede por mudanças na forma de fazer política.
ENTREVISTA > ADRIANO OLIVEIRA Cientista político da UFPE
"Não há relação entre transporte e a reforma"
A reforma política não assegura o fim da corrupção e as melhorias cobradas para a educação, a saúde e o transporte público. Para o cientista político Adriano Oliveira, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o importante é, independentemente do sistema eleitoral, exigir uma nova atitude da classe política. Sem conscientização e punições, qualquer reforma será inócua.
Zero Hora - A presidente Dilma Rousseff acertou ao propor a reforma política, mediante a convocação de um plebiscito?
Adriano Oliveira - Do ponto de vista estratégico, a presidente Dilma acertou, pois deu uma satisfação à nação que estava nas ruas e ainda conseguiu colocar o Congresso na responsabilidade de votar as medidas propostas. Isso funcionou. Já no lado político, a presidente errou, propôs um debate muito amplo. Não há relação entre transporte público de qualidade, o estopim das manifestações, e a reforma política.
ZH - A reforma política não atende aos pedidos feitos nas manifestações?
Adriano - As manifestações pelo Brasil inteiro pediram muitas coisas, é difícil estabelecer pautas específicas. Mas a pesquisa do Datafolha disse que a população é favorável à reforma política, quer mudanças na forma de fazer política. Porém, qual é a reforma, sobre o que, quais temas? Existe uma ideia errada de que a reforma política vai melhorar os serviços públicos e que vai melhorar a classe política do país.
ZH - A reforma pode não ter o resultado esperado pela presidente?
Adriano - A reforma política pode oxigenar o sistema político, o que é bom, mas não necessariamente garantirá a eficiência do modelo. Não existe a relação obrigatória de que, fazendo a reforma, as coisas vão melhorar. Só teremos um sistema eficiente se as instituições de fiscalização funcionarem plenamente, punindo quem merece ser punido, e se a classe política mudar a postura de se aproveitar do Estado.
ENTREVISTA > Helcimara Telles Cientista política da UFMG
"O plebiscito dará maior legitimidade às decisões"
Professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a cientista política Helcimara Telles acredita que a reforma política encontra eco nas manifestações. Estudiosa da comunicação e do comportamento do eleitor, ela destaca que os brasileiros pediram mais participação na tomada das decisões e refutam a política pautada por interesses econômicos. Para ela, o plebiscito é fundamental por colocar o debate em evidência.
Zero Hora - A presidente Dilma conseguiu entender o grito das manifestações nas ruas ao propor a reforma política?
Helcimara Telles - O movimento é fragmentado em termos de pauta, mas teve focos na questão do transporte público, saúde e educação. A população também disse que não se sente representada pelos políticos, criticou o caráter centralizado das decisões no setor público, pouco conectadas com as pessoas. Nesse sentido, a proposta de reforma política vai ao encontro do pedido de maior participação dos cidadãos nas decisões do país.
ZH - Os temas sugeridos por Dilma estão conectados com os pedidos de mudança?
Helcimara - As sugestões tentam tornar a representação mais democrática e transparente. O fim das coligações dará ao eleitor a certeza de que o voto vai para seu partido. Terminar com a suplência no Senado e o voto secreto no Congresso aumentam a transparência. E as pessoas deram um aviso sobre a importância de uma política mais influenciada pela vontade popular e menos pela economia. Hoje, o político representa mais a empresa que o financiou do que o próprio eleitor.
ZH - É importante chamar um plebiscito, como sugere a presidente Dilma?
Helcimara - O plebiscito levanta o debate de como funciona o atual modelo de representação. O eleitor terá de se debruçar sobre as regras do sistema eleitoral, um tema técnico e por vezes chato, mas que influencia diretamente sua vida. O plebiscito dará maior legitimidade para as decisões e os resultados da reforma política. Agora, não há garantia da eficiência do resultado, isso não é função da democracia.