Equipamentos novos nunca foram utilizados
Em um labirinto de salas e corredores, equipamentos da década de 1970 dividem espaço com máquinas mais modernas, adquiridas em meados dos anos 2000, mas com prazo de garantia prestes a expirar - ou já expirados - sem que nunca tenham sido utilizadas.
A impressão é de viagem no tempo, mas o cenário não é o de abandono. Pelo contrário. Não fosse pela pouca circulação de pessoas e pela ausência de ruídos típicos de uma fábrica, a limpeza impecável do chão, vidros e utensílios e o ambiente climatizado poderia confundir os mais desavisados.
Quem conduz a reportagem pela estrutura de 3 mil metros quadrados - o equivalente a quase meio campo de futebol - é o diretor do Lafergs, Paulo Mayorga. Entusiasmado, ele conta que, assim que assumiu o cargo, em 2011, uma de suas primeiras tarefas foi fazer com que o "coração da fábrica", o setor de Controle de Qualidade, voltasse a bater.
Para cortar despesas, a equipe de 30 pessoas, na época, foi reduzida pela metade. O ex-diretor da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) acredita que a retomada da produção de medicamentos pelo Lafergs está a um passo de acontecer.
Segundo ele, os valores gastos com a manutenção da estrutura são fundamentais para que ela volte a operar.
- Para que a gente tenha qualquer aprovação da vigilância, é preciso estar com as coisas em dia, e isso significa ter o laboratório aparelhado, com equipamentos calibrados, matérias-primas disponíveis, técnicas testadas e validadas. O fato de não produzir não significa que não haja uma atividade interna - diz.
Saudosista, o farmacêutico Mauro Gomes, que trabalhou no local por quase uma década, sendo realocado posteriormente devido ao fechamento, não vê a hora da reativação.
Convidado a voltar para o laboratório, ele lembra dos tempos em que, quase todos os dias, caminhões carregados levavam medicamentos para a Divisão de Assistência Farmacêutica. A esperança é de que, em breve, cenas como essa voltem a fazer parte da rotina, hoje limitada a testes e à manutenção da estrutura.
- A gente tem uma ligação quase sentimental com o Lafergs. Daqui, levamos até cicatrizes - diz, mostrando a mão em que carrega a marca de um corte provocado por um balão de ensaio.
Perdas de insumos
Um caso emblemático de desperdício do Lafergs foi apontado pela Cage e pelo TCE. Em 2005, 60 quilos de sulfato de morfina foram comprados por R$ 442,6 mil. O material seria utilizado na produção de morfina farmacêutica, o que não ocorreu.
Quatro anos depois, metade do insumo estava prestes a vencer. A Fepps contratou a empresa Cristália, para transformar 30 quilos em 46,6 mil frascos de morfina farmacêutica, por R$ 630 mil.
A medida, que daria sobrevida de 24 meses ao produto, foi adotada tendo em vista que a Secretaria da Saúde poderia consumir 48 mil frascos. Contudo, até março de 2011, só 11 mil frascos tinham sido comprados.
Em 2010, os demais 30 quilos foram revendidos à Cristália por R$ 40 mil - valor 5,5 vezes inferior ao pago na compra. Na época, Cage e TCE calculavam prejuízo de R$ 890 mil.
Para operar, Lafergs ainda precisa de R$ 25 milhões
Apesar do otimismo, o diretor do Laboratório Farmacêutico do RS (Lafergs), Paulo Mayorga, reconhece que o caminho para a reativação total do órgão é longo e passa por questões como reposicionamento, contratação de pessoal, recomposição de portfólio e investimentos de R$ 25 milhões em maquinário.
Mayorga tem a missão de dar aos gaúchos um bom motivo para que as quatro décadas do laboratório, em 2014, sejam, de fato, motivo de comemoração. Por isso, a ideia é que a produção seja retomada no ano que vem, tendo o protetor solar como abre-alas.
A fabricação do cosmético, além da facilidade de registro, terá como objetivo atender à lei estadual que determina distribuição gratuita do produto a agricultores familiares, devido à elevada incidência de câncer de pele no Estado.
Mas o primeiro passo para que a estrutura volte a cumprir sua vocação foi dado em abril, com a assinatura de três parcerias de desenvolvimento produtivo (PDPs), envolvendo Lafergs, Ministério da Saúde e o laboratório Cristália, de Itapira (SP). Por meio delas, o governo federal pretende adquirir medicamentos para tratar malária e leishmaniose a custo reduzido e obter transferência de tecnologia internacional para laboratórios do Brasil.
A largada na produção, ainda sem data, será no parceiro privado, que arcará com os custos de registro e desenvolvimento dos produtos. Em até cinco anos, a fabricação dos três medicamentos, que representam gasto anual de R$ 14 milhões para o Ministério da Saúde, deverá ser transferida para o Estado. Em contrapartida, o Cristália passa a ser fornecedor de matéria-prima ao final da parceria.
- Conseguimos fazer milagre em dois anos, embora as pessoas achem que está demorando - avalia o diretor, destacando que as PDPs poderão reduzir prazos e custos da reativação.
Laboratório deve atuar nas brechas do mercado
Para o presidente da Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps), José Vellinho Pinto, o papel do Lafergs não é o mesmo de décadas atrás.
Na avaliação dele, ex-prefeito de Canela, se antes o laboratório produzia dezenas de tipos de medicamentos, competindo, muitas vezes, em desvantagem no mercado, atualmente o seu dever é preencher espaços deixados pela iniciativa privada, como na área de doenças negligenciadas - que atingem a parcela mais pobre da população e marginalizada pela indústria farmacêutica.
- Lembro que, quando falavam de medicamento do Lafergs, a gente até torcia a boca, porque vinham e nos faziam comprar, e o preço era maior que o de mercado, e o produto, às vezes, não chegava - recorda o ex-prefeito.
Diretor do Lafergs, Paulo Mayorga também aponta a competitividade do mercado farmacêutico como um agravante para a crise enfrentada pelos laboratórios oficiais. Segundo ele, com a tendência de fusão de empresas, o acesso fica cada vez mais restrito, pois esses grupos passam a fabricar milhões de unidades em pouco tempo, reduzindo o preço final.
Uma das alternativas para que o laboratório conquiste a sustentabilidade, conforme o diretor, é a mudança de figura jurídica do atual departamento da Fepps, mas a discussão ainda é incipiente. Questionado sobre uma possível venda da estrutura, Mayorga é enfático:
- Posso estar equivocado, mas desconheço casos no Brasil de estruturas deficitárias que tenham sido privatizadas. Seria um retrocesso, porque o Lafergs é um grande patrimônio público, e a ideia do medicamento como elemento da soberania nacional é uma coisa muito forte para muitos países.
A passos lentos
O Lafergs foi fundado em 1972, no governo Euclides Triches, com o objetivo de produzir medicamentos para atender aos programas de saúde, com distribuição e comercialização na rede pública
Governo Germano Rigotto
- Em setembro de 2004, a fábrica foi fechada para que fossem executadas as obras de ampliação. Uma empresa foi contratada por R$ 4,5 milhões, com prazo de trabalho de 120 dias.
- O então secretário da Saúde, Osmar Terra, chegou a inaugurar parte das instalações físicas em março de 2006. A expectativa era de que ainda naquele ano fosse retomada a produção, mas as obras não foram concluídas.
Governo Yeda Crusius
- Por conta do atraso nas obras, o contrato de execução foi rescindido em 2007. No ano seguinte, outra empresa venceu a licitação de R$ 3,2 milhões, com prazo de 180 dias para conclusão dos serviços.
- Em dezembro de 2010, foi inaugurada a obra de ampliação, mas ainda sem garantir a retomada da produção. Na época, o governo calculava ter investido R$ 10 milhões para que o laboratório voltasse a produzir medicamentos de acordo com as normas da Anvisa.
Governo Tarso Genro
- Em 2011, o Lafergs obteve da Vigilância Sanitária a condição técnica operacional (CTO), documento essencial para o encaminhamento da aprovação de novos registros de medicamentos na Anvisa. Devido à prolongada inoperância, o Lafergs perdeu o registro de 12 remédios produzidos até 2004.
- Há dois meses, Lafergs, Ministério da Saúde e Laboratório Farmacêutico Cristália, de Itapira (SP), assinaram parcerias de desenvolvimento produtivo (PDP) de três medicamentos para tratamento da malária e da leishmaniose.
- A expectativa é de que produtos com a marca Lafergs, fabricados pelo Cristália, cheguem ao mercado no ano que vem. Contudo, a reativação da indústria ainda depende de investimentos na ordem de R$ 25 milhões, segundo a direção.