
O sonho de obter a carteira de motorista virou um longo e custoso pesadelo para a empregada doméstica Lessi Ledes Ferri. Nos mais de dois anos em que tentou ser aprovada no exame de habilitação, ela precisou investir mais de R$ 5 mil em 96 aulas práticas extras, até finalmente ser aprovada, depois de 13 testes, no dia 17 de setembro último.
A história de Lessi, uma gaúcha de 53 anos que passou por três autoescolas, teve de conviver com descaso de instrutores e com o nervosismo de colecionar notas de testes fracassados, ilustra a realidade que milhares de candidatos a motorista. De janeiro a agosto deste ano, o índice de reprovação nas provas no Departamento Estadual de Trânsito do Rio Grande do Sul (Detran-RS) foi de 61,38%.
Muitas são as explicações para o martírio: a tensão de passar por um examinador rígido, o despreparo de alguns instrutores e até a falta de empenho dos próprios alunos (leia mais ao lado). Antes de 2010, Lessi nunca havia tentado guiar um automóvel.
- Fiz mais do que as 20 aulas recomendadas porque me achava incapaz de fazer a prova. Na primeira, deixei o carro apagar e, por falta de informação, achei que estava rodada. Abandonei o carro, até que o fiscal me avisou que eu só tinha perdido dois pontos. Depois disso, o nervosismo bateu, e não conseguia fazer mais nada - lamentou a mulher, que levou quatro vezes mais tempo do que o previsto - quatro meses, em média - , para a conclusão do processo.
"Mínimos erros são cobrados
Na avaliação do presidente do sindicato dos Centros de Formação de Condutores (CFCs), Edson Luis da Cunha, um dos maiores erros dos alunos é encarar a autoescola como um obstáculo para chegar ao objetivo, que é a obtenção da carteira de motorista:
- A maioria deles (candidatos) é muito nova, entre 18 e 21 anos, com outras prioridades, não se dedica tanto quanto deveria. Chega na hora da prova, é claro que não estão preparados. São ansiosos, querem pegar na hora, não levam como algo importante o que aprendem na autoescola.
O perito criminal aposentado Clovis Santos Xerxenevsky concorda com Edson Luis Cunha, e acrescenta que a rigidez na prova é necessária:
- Para tudo quanto é atividade, (o candidato) tem de estudar bastante. No trânsito não tem de ser diferente. O carro é uma arma. Se você não usa bem, pode provocar danos às pessoas.
O que mais entristeceu Lessi nos três anos de calvário foi ver que, no dia a dia, tudo o que lhe era exigido não se aplicava à rotina no volante.
- A prova cobra muito os mínimos erros - afirma Lessi.
O chefe da Divisão de Exames Teóricos e Práticos do Detran-RS, Jeferson Fischer Sperb, reconhece que a exigência nos testes é alta, mas salienta que os examinadores seguem uma resolução nacional do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) que estabelece os critérios aplicados na prova.
Além disso, explica que o número de examinadores, hoje, está aquém da necessidade. No total, são 150 examinadores - além de mais 64 contratados emergencialmente, mas que ainda não começaram a atuar.
- Esse déficit de pessoal represa a prova e faz com que, às vezes, se dê uma distância da aula até a prova, e o candidato que ficou um tempo sem praticar pode esquecer de alguns detalhes - reforça Jeferson.
De 2010 até junho de 2013, foram protocolados 800 recursos contra a prova prática do Detran-RS - em apenas 3% dos casos, foi garantido ganho de causa ao aluno.
Mesmo assim, para corrigir possíveis falhas de examinadores, o Detran desenvolveu um projeto que prevê a gravação em vídeo das provas práticas. A ideia foi lançada em novembro de 2012, mas ainda está em fase de elaboração da licitação.
Reprovação entre as mulheres chega a 70%
O nervosismo é determinante para o alto índice de reprovação nos testes. Vem sendo assim com a empresária Kátia Cristine da Silva Pereira, 28 anos.
- O pé pula na embreagem, e aí tudo acontece. Na primeira tentativa, encostei na baliza. Em outra, quase subi no cordão da calçada. E assim vai - comenta Kátia, que vai para o quinto teste no próximo dia 29.
As mulheres alavancam os índices de reprovação no Estado: nos oito primeiros meses de 2013, o índice de repetência nas provas femininas foi de 70%, contra 48,23% dos homens.
Rosa Maria Martins de Almeida, professora de Psicologia do Trânsito do curso de Gestão do Trânsito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), diz que fatores fisiológicos explicam as diferenças:
- As mulheres se estressam muito, se deprimem mais e sentem mais ansiedade. Eles (homens) são mais focados no teste. Elas dirigem melhor depois, no dia a dia, são mais cuidadosas.
A professora de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e terapeuta cognitivo-comportamental Andressa Bellé diz que a prova é tensa para homens e mulheres:
- É um desafio pela ansiedade de desempenho. Tem alguém ao lado. É uma observação permanente, que valoriza mais o erro do que o acerto.
Luciane Brisotto atuou por nove anos em CFCs, como instrutora, diretora de ensino e psicóloga perita. De tanto acompanhar o sofrimento dos alunos, abriu um centro para tratar dos males ligados ao trânsito. Recebe pessoas que repetiram o teste e que fazem exercícios para se manter mais calmos e repensam as causas da insegurança.
Para ela, a prova intimida muito pelo fato de ser pouco humanizada. Além disso, diz, o fato de se ter uma prova tão rígida faz com que os CFCs preparem o indivíduo apenas para o teste e focam na aprovação como uma consequência de formação adequada.
- Tudo isto faz aumentar o monstro. Se fosse um ensino voltado para a vida real, a aprovação seria uma coisa natural. Mas fica-se o tempo todo da aula se lembrando da prova - diz Luciane.
O simulador pode ajudar?
A obrigatoriedade do simulador de direção foi prorrogada para 31 de dezembro de 2013. Apesar de estarem otimistas com os efeitos do equipamento nas ruas, especialistas não creem que ele poderá diminuir o índice de reprovação. A ideia é que os alunos passem por cinco aulas de 30 minutos com o equipamento, que cria situações reais de momentos críticos em um cenário virtual.
AS CAUSAS DO MAU DESEMPENHO
Psicológicas
Boa parte dos candidatos tem 18 anos. Como esta é a fase em que o córtex pré-frontal, área cerebral responsável pela tomada de decisão, ainda está amadurecendo, o resultado na prova, que é baseada em iniciativa, pode não ser satisfatório.
Homens e mulheres têm capacidades diferentes: eles têm mais orientação espacial, por isso, é tão difícil para elas concluírem as provas de baliza, necessitando de mais tempo de treinamento.
O estresse libera cortisol, hormônio que atrapalha o funcionamento das atividades cognitivas, principalmente da memória e da avaliação da situação emocional a ser enfrentada.
Se o percurso fosse realizado antes da baliza, o resultado seria melhor, pois, no cérebro, os movimentos mais amplos preparam para os movimentos mais precisos, dizem especialistas.
Técnicas
Número de aulas obrigatórias insuficiente para quem está dirigindo pela primeira vez.
Os instrutores focam as aulas no que será cobrado na prova, gerando tensão no candidato e deixando de prepará-lo para agir na vida real. Em alguns casos, também há pouca qualificação dos instrutores.
Como o Detran tem déficit de examinadores, e o número de candidatos é alto, a agenda da prova tende a ser concorrida, o que pode provocar um distanciamento da data da última aula e o exame. Nesse período, se não praticar, o candidato pode esquecer de alguma lição importante.
Comportamental
Como o custo para fazer a prova não é alto (R$ 28,47), as pessoas arriscam a sorte, mesmo sem terem certeza de que estão preparadas.
Em alguns casos, a autoescola não é vista como um processo de aprendizado, mas como um obstáculo para a conquista do objetivo final, que é a habilitação. Assim, muitos não levam o período da autoescola a sério, e não se dedicam o suficiente.
COMO É O TESTE PRÁTICO
Somente após a aprovação na baliza (simulação do estacionamento em uma vaga) é que o candidato passa à segunda fase, o percurso. No total, tolera-se a perda de, no máximo, três pontos. Confira as principais faltas:
NA BALIZA
Reprovação
Avançar sobre o meio-fio.
Não colocar o veículo na área balizada em, no máximo, três tentativas, em período máximo de quatro minutos.
Encostar em alguma baliza.
Três pontos
Não sinalizar com antecedência a manobra pretendida ou sinalizá-la incorretamente.
Não usar devidamente o cinto de segurança.
Dois pontos
Deixar o carro apagar após o início da prova.
Um ponto
Ajustar incorretamente o banco do condutor.
Não ajustar devidamente os espelhos retrovisores.
NO PERCURSO
Reprovação
Desobedecer ao comando do semáforo ou a paradas obrigatórias.
Dirigir na contramão.
Avançar a via preferencial.
Três pontos
Não observar as regras de ultrapassagem ou de mudança de sentido.
Não parar para um pedestre.
Manter a porta do veículo aberta.
Dois pontos
Deixar o carro descer na lomba.
Usar o pedal da embreagem, antes de usar o pedal de freio nas frenagens.
Entrar nas curvas em ponto neutro.
Um ponto
Apoiar o pé na embreagem com o veículo engrenado e em movimento.
Dar partida ao veículo com o freio de mão puxado ou em ponto morto.
Quanto custa a obtenção da carteira
O investimento para quem busca habilitação para a categoria B (carros com capacidade de até 3,5 mil quilos e até oito passageiros)
Gastos básicos
Expedição do documento R$ 38,99
Exame de saúde R$ 49,82
Prova teórica R$ 27,13
Exame psicotécnico R$ 49,82
Prova prática R$ 47,19
Aulas teóricas R$ 256,05 pelas 45 horas mínimas
Aulas práticas R$ 633,60 pelas 20 horas mínimas
Locação do veículo para a prova prática R$ 28,47
Valor total R$ 1.131,07
Gastos extras
Aulas extras, caso necessárias R$ 31,68 a hora
Em caso de reprovação, mais R$ 28,47 por prova
O processo tem validade de um ano.
Se o candidato não passar depois de dois anos, tem de recomeçar todo o processo.