O romance nasce do fim da noção clássica de coletividade - é a epopeia do indivíduo, e não é de estranhar, portanto, que a figura do náufrago seja um dos pilares do gênero: a história de Robinson Crusoé, narrada por Daniel Defoe no livro de mesmo nome publicado em 1719. O homem solitário que passa 28 anos em uma ilha representa a máxima realização moderna: o indivíduo que, por meio de seu engenho e perseverança, tem sucesso em não apenas sobreviver ao ambiente potencialmente hostil, mas também transformá-lo. Como lembra Ian Watt no clássico estudo A Ascensão do Romance, a chave para entender o náufrago como mito literário nascido em Robinson Crusoé é perceber que Defoe realiza, no plano literário, "a oportunidade única de concretizar o grande anseio da civilização moderna: a absoluta liberdade econômica, social e intelectual do indivíduo".
Crusoé é o herói por excelência da modernidade: um homem razoavelmente comum que domina a ilha na qual vai parar amparado em seu próprio espírito, por um lado, e no legado do engenho humano por outro, uma vez que ele consegue salvar do naufrágio um precioso estoque de ferramentas que o ajuda a reproduzir na ilha aparentemente despovoada um arremedo da civilização de onde havia vindo. Quando encontra outros habitantes, Crusoé impõe seu domínio sobre eles de forma tão "natural" que se recusa sequer a aprender o nome e o idioma de seu companheiro Sexta-Feira, dando a ele um novo nome por achar o original muito complexo.
É a Crusoé que as grandes histórias de náufragos acabam por remeter, inevitavelmente. A mais recente delas a se tornar sucesso é A Vida de Pi, na qual o canadense Yann Martel narra a história do jovem indiano Pi Patel, vitimado por um naufrágio quando ele e sua família viajavam carregando a bordo todos os animais do zoológico que administravam na Índia. O tema básico da privação de Pi sai de um romance de Moacyr Scliar, Max e os Felinos. Na novela de Scliar, Max termina em um bote em alto-mar com uma pantera. Pi acaba no bote com um tigre e ali encena o que se poderia chamar de uma releitura terceiro-mundista do mito de Crusoé. Para sobreviver sem ser devorado pelo tigre, Pi passa a dedicar seus dias a alimentá-lo. Forma uma balsa com a qual flutua fora do bote, pesca para alimentar o tigre e subsiste das rações de emergência a borde do escaler. Não é o homem que domina a natureza, mas que negocia sua "dependência" diante de um adversário mais forte, numa metáfora da condição dos países em desenvolvimento.
Pi também remete à história do náufrago salvadorenho José Alvarenga porque sua versão da história é vista como fantasiosa por aqueles que se dedicam a investigá-la, e por baixo da miraculosa aventura pode se esconder uma outra narrativa, mais seca e brutal. O que levanta tantos senões é o tempo que Alvarenga diz ter ficado à deriva privado de recursos: 13 meses. Outra clássica narrativa de naufrágio, o Relato de um Náufrago, de Gabriel García Márquez, flagra um homem que ficou bem menos tempo do que isso em alto-mar: "10 dias sem comer nem beber". A bordo de um destróier da marinha colombiana, Luis Alejandro Velasco caiu no mar com outros sete companheiros durante uma tempestade e chegou a ser declarado oficialmente morto, até aparecer em uma praia. García Márquez usou o episódio para um livro que mistura o talento do escritor com uma versão caribenha do new journalism. Reconstitui minuciosamente minuto a minuto da privação do marinheiro, sempre de olho em algo que aprendeu com os Naufrágios e Comentários de Cabeza de Vaca. Algo que hoje ecoa na história de Alvarenga: que todo relato de náufrago sobrevivente tem um pé na esfera do maravilhoso.