A atual crise entre Ucrânia e Rússia poderia ser resolvida por meio de negociações e reformas constitucionais, mas a inconformidade do governo russo com a derrubada de seu aliado Viktor Yanukovich da presidência dificulta a possibilidade de uma solução. Essa é, em síntese, a opinião do especialista em assuntos ucranianos Taras Kuzio. Professor da Universidade de Alberta, no Canadá, esse britânico de 56 anos, filho de ucraniano e italiana, fará uma conferência intitulada "Crise na Ucrânia: e agora?", na quinta-feira, às 13h, na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo. Na manhã de ontem, por telefone, ele concedeu a seguinte entrevista a Zero Hora:
Zero Hora - A Ucrânia está à beira de uma guerra civil?
Taras Kuzio - Não. Uma guerra civil pressupõe a existência, de cada lado, de grande número de pessoas que realmente se odeiam mutuamente por razões religiosas, étnicas ou outras. Não é o caso da Ucrânia. A maioria dos ucranianos é de religião cristã ortodoxa e fala ucraniano, russo ou ambos. Em muitos sentidos, esta crise é artificial. Muitos falantes de russo no leste da Ucrânia não gostam do fato de que seu líder, Viktor Yanukovich (presidente deposto em 22 de fevereiro), tenha sido afastado do poder por uma revolução em Kiev. Mas também não gostam dessas gangues armadas tomando o poder no Leste. Assim, a maioria no leste da Ucrânia não gosta de ambas as coisas: nem das pessoas em Kiev, porque creem que não chegaram ao poder de forma democrática, nem dos separatistas armadas que estão controlando sua região com ajuda de soldados russos. Essa situação não é propriamente uma guerra civil, é um tipo de conflito falso e artificial criado pela Rússia.
ZH - A Ucrânia existe em suas fronteiras atuais há quase 80 anos. Houve muitos conflitos ou contradições mantidos sem solução durante esse período?
Kuzio - Todas as fronteiras nacionais são, em algum grau, artificiais. Não são dons de Deus ou algo assim. As fronteiras brasileiras são do tempo do Império. O mesmo ocorre com as fronteiras na Europa e em todos os lugares. É muito raro que um grupo étnico esteja encerrado em fronteiras que pareçam naturais. Normalmente, as fronteiras são artificiais na maioria dos países. No caso da Ucrânia, as fronteiras foram estabelecidas em 1917, depois da Revolução Bolchevique, ou em 1944, quando a União Soviética se expandiu e ocupou territórios em que viviam ucranianos no Oeste. A única área em disputa com a Rússia era a Crimeia, porque era a única região ucraniana com uma verdadeira maioria étnica russa. O leste da Ucrânia nunca foi realmente uma área de conflito. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, tem se referido à história imperial da Rússia e dito que o sul e o leste da Ucrânia pertenciam ao Império Russo. Mas, se você usa a história russa, poderia dizer que o Alasca e a Finlândia também faziam parte do Império Russo. Ou, para usar o mesmo argumento, poderia dizer que a Califórnia e o Texas faziam parte do Império Espanhol. Se você começa a voltar para trás na história, haveria muitas mudanças de fronteiras no mundo e se tornaria perigoso entrar nessa espiral com base no fato de que "no século 18 ou no século 17, esta região me pertencia". Isso é ridículo. A Crimeia é a única área de disputa, mas todos sabem que essa região tem maioria russa em razão de uma terrível limpeza étnica e atrocidades. A maioria original, nessa região, era de muçulmanos tártaros da Crimeia. Eles eram parte do Império Turco Otomano e foram progressivamente exterminados e atacados. Tornaram-se minoritários de forma artificial, por obra do imperialismo russo. Em 1944, foram deportados por Josef Stalin (ditador soviético), metade deles morreu, foram vítimas de genocídio. Assim, a Crimeia tem três áreas potenciais de conflito - entre a Ucrânia e a Rússia, mas também entre a Rússia e os tártaros da Crimeia. Se o leste da Ucrânia é uma área potencial de conflito com a Rússia, o mesmo deve ser dito sobre muitas regiões do mundo. Isso seria ridículo, porque muitos países poderiam levantar reivindicações sobre território. A Nigéria deveria retornar à França, a Irlanda, à Grã-Bretanha, o Texas, ao México.
ZH - Os russófonos são uma minoria nacional na Ucrânia?
Kuzio - Não. É como dizer que os hispânicos são um grupo étnico. Eles são um grupo linguístico. Nos Estados Unidos, hispânicos podem ser cubanos, mexicanos e outros - são povos diferentes. O fato de falarem a mesma língua não faz deles parte do mesmo povo. Sou britânico e vivo no Canadá, mas os canadenses são distintos dos britânicos, dos australianos e assim por diante. Você não pode dizer que um grupo linguístico é o mesmo que um grupo étnico. Na Ucrânia, os russófonos são um grupo muito grande e variado. Em Kiev, você encontrará falantes de russo que apoiaram a revolução. Se você procurar por vídeos da revolução no YouTube, encontrará muita gente falando russo. É mais complicado.
ZH - Existe algum tipo de questão linguística na Ucrânia?
Kuzio - De acordo com organizações internacionais, como o Conselho da Europa e outras instituições de direitos humanos, não há repressão aos falantes de russo na Ucrânia. Jornais e canais de TV em língua russa são mais comuns do que em língua ucraniana. Na União Soviética, havia uma política de russificação, e as pessoas tinham de falar russo, que era a língua do comunismo soviético. Assim, a língua discriminada não era o russo, e sim o ucraniano. Hoje, quando pessoas se queixam de discriminação contra o russo, o que eles estão realmente dizendo é que não querem ser forçados a aprender ucraniano. Na era soviética, russos não eram obrigados a falar lituano, estoniano ou ucraniano. Agora, esses países são independentes, e eles se queixam de discriminação por ter de aprender as línguas oficiais desses países. Mas isso, mais uma vez, é ridículo. Meu pai era ucraniano e chegou à Grã-Bretanha em 1947, e minha mãe, italiana, em 1955. Como poderiam ter vindo para a Grã-Bretanha sem aprender inglês? Como se pode ir viver no Brasil sem aprender português? Se você vai viver num país estrangeiro, você tem de aprender a língua e a cultura daquele país. Isso é normal. Devemos ser cuidadosos. Se há queixas de discriminação, pode-se também questionar se pessoas de uma antiga nação imperial não são desrespeitosas com a língua e a cultura do país em que vivem. É uma atitude imperial em relação a um povo ex-colonial.
ZH - A proposta de federalização da Ucrânia, feita pelo governo russo, pode funcionar?
Kuzio - Não. O federalismo não é popular. As pesquisas de opinião na Ucrânia mostram que essa ideia não tem mais de 10% de apoio. A razão é simples: as pessoas associam o federalismo com aspectos negativos em países pós-comunistas. Elas relacionam federalismo com desintegração. Estados federais, como Iugoslávia, Checoslováquia e União Soviética, se desintegraram. Elas não vêm federalismo como algo positivo, esse é um conceito impopular. O que muitas pessoas gostariam, na maioria dos países, é algum tipo de descentralização: elas querem governo local, autonomia local. Isso é sempre popular, porque as pessoas querem decisões tomadas localmente, e não de forma centralizada, especialmente em países grandes. Descentralização é popular, mas não federalismo. O que tem sido um equívoco é não tratar da reforma da velha administração territorial que ainda existe na Ucrânia. É basicamente o velho sistema soviético, com regiões (oblasts), províncias, cidades, que ainda está lá, é muito centralizado e deveria ser europeizado. Mas isso não é o mesmo que federalismo.
ZH - Na sua opinião, a cúpula de Genebra ofereceu respostas para as principais causas da crise ou foi apenas mais um encontro político sem consequências?
Kuzio - Foi apenas uma discussão política para acalmar a situação. A Rússia nunca pretendeu realmente implementar o acordo, e isso não é surpreendente. É interessante e estranho que governos ocidentais e organizações internacionais como a União Europeia estejam dizendo aberta e publicamente que os russos são mentirosos. É muito raro que diplomatas façam publicamente esse tipo de declaração. Estão dizendo que os russos não falam a verdade sobre, por exemplo, a existência de tropas russas na Crimeia, e então Putin diz: "Sim, havia tropas russas na Crimeia". Há muita desconfiança entre as partes, e, quando não há confiança entre os participantes de uma negociação, é muito difícil implementar um acordo. Outra razão é que as pessoas armadas pela Rússia no leste da Ucrânia não aceitam se desarmar. Começaram a exigir o que os russos exigem: mudança de regime em Kiev, cancelamento das eleições de maio. Não sou otimista sobre a implementação dos pontos acordados em Genebra.
ZH - Putin busca a restauração da antiga esfera soviética de influência ou tenta apenas obter mais popularidade em nível interno às custas da política externa?
Kuzio - As duas coisas. Sabemos que, na América Latina, nacionalismo e populismo rendem popularidade crescente para os políticos. Isso é verdade em muitas partes do mundo. Putin está se tornando mais popular. Os russos não estão dirigindo seu descontentamento contra o regime, que é muito corrupto e brutal. Essa é uma maneira de dirigir sua raiva contra algo no exterior. Ao mesmo tempo, ele vê a si mesmo como líder imperial russo, fala do sul e do leste da Ucrânia como partes da Rússia, usa o velho termo imperial para essas regiões, Novorrossiya (Nova Rússia). Ele tem muitos objetivos: quer desviar atenção dos problemas domésticos por meio de nacionalismo e populismo e tenta fazer algo similar ao que os Estados Unidos fizeram na América Central e na América do Sul durante a Guerra Fria, ou seja, tratar as regiões que faziam parte da antiga União Soviética como seu quintal. No Ocidente, imagina-se que não há espaço para esse tipo de política porque a Guerra Fria terminou há 20 anos. Potencialmente, estamos assistindo à emergência potencial de uma nova Guerra Fria.