As colunas de pedra continuam imponentes no sopé das encostas pontilhadas de túmulos - e ainda brilham com uma cor rosada ao sol da tarde, impassíveis, como se não se impressionassem com aquela que, afinal de contas, não é a primeira guerra que testemunham.
No Templo de Bel, erguido no século I, um dos mais bem preservados da antiga cidade, uma das colunas tem novas cicatrizes: do morteiro que deixou marcas na pedra, mesmo não tendo abalado a estrutura que existe há mais de dois mil anos. Perto dali, outras duas foram destruídas e as balas deixaram buracos nas paredes - mas considerando-se o colapso total que se temia, o prejuízo, por enquanto, é mínimo.
No entanto, a guerra deixa outras feridas, mais profundas, menos óbvias. As escavações ilegais, problema que há tempos aflige os diversos sítios arqueológicos da Síria, aumentaram significativamente durante os três anos do conflito. Ladrões de túmulos, alguns meio atrapalhados, outros profissionais, afanaram inúmeros objetos das tumbas de Palmira, dizem as autoridades, muitas vezes serrando os frisos funerários para facilitar o transporte.
Outra vítima é Tadmur, um amontoado de concreto na periferia das ruínas de cidade antiga. Ali, a economia advinda do turismo não existe mais. Para os moradores, que se consideram guardiões de um das localidades históricas mais magníficas do mundo, a dor é ainda maior, mesmo que menos visível.
Eles sentem saudade dos tempos em que Palmira mostrava aos visitantes do mundo inteiro uma visão da Síria que ia além do confronto dos dias atuais na região como centro que reunia as culturas grega, romana, persa e islâmica. Os arqueólogos que trabalharam nas ruínas, hoje fechadas e sob proteção militar, ainda recebem seus salários, mas foram privados de uma experiência que enchia seus dias de beleza e significado: escavar ao nascer do sol, que aos poucos iam banhando as pedras com sua luz dourada.
- Eu me sinto como se estivesse morto, conta Khalil al-Hariri, arqueólogo e diretor do Museu de Palmira, próximo às ruínas. Ele passa o tempo esperando a permissão do governo para retomar suas explorações matinais, preocupado com os saques que, em suas palavras, destrói a cultura e a civilização.
Para a Unesco, organização das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura que trabalha para proteger locais históricos, todos os seis regiões consideradas Patrimônio da Humanidade na Síria estão ameaçadas, incluindo Palmira, mas a guerra impede que seus representantes verifiquem os danos pessoalmente. Recentemente o governo consolidou o controle da estrada que atravessa o deserto de Homs para Tadmur, o que permitiu que jornalistas visitassem a área, primeiros estrangeiros a passar por ali desde a revolta que se espalhou pela região em 2011.
O conflito demorou a atingir essa cidadezinha tranquila no deserto ? segundo os moradores, depois que os rebeldes finalmente se manifestaram e um oficial do alto escalão do Exército caiu com o governo ? e dá sinais esporádicos de vida há cerca de um ano. Segundo a polícia e os moradores, muitos dos insurgentes são pessoas da área que se escondem no oásis ao lado das ruínas. Os bombardeios e tiroteios interromperam as colheitas e danificaram as árvores.
Eles também ocuparam o Templo de Bel e saquearam uma pousada moderna que há ali. O Hotel Zenobia, construído em 1900 entre as ruínas, onde hóspedes como Agatha Christie acordavam com a luz matinal sobre as colunas, jaz destruído e queimado.
Agora é o Exército Sírio que usa as ruínas para fins militares ? e tornou inacessível o castelo no topo de uma colina no século XVI, o que, segundo o pessoal da segurança, aumenta o medo da população de que os equipamentos pesados possam danificá-lo. A Unesco diz que há tanques e peças de artilharia no local.
Palmira escapou da destruição catastrófica que se abateu sobre a Cidade Velha de Alepo, transformada em campo de batalha em meados de 2012. Os ataques destruíram seus mercados medievais cobertos depois que os insurgentes se refugiaram ali e as tropas do governo se posicionaram na cidadela do século XIII. A guerra também danificou o Crac des Chevaliers, um dos castelos dos tempos das Cruzadas mais bem preservados do mundo, há tempos ocupado pelos insurgentes e recuperado em março pelo governo.
Nada al-Hassan, diretora da unidade da Unesco nos países árabes, diz que o maior perigo que Palmira e outros sítios mais remotos correm é o das escavações ilegais feitas por "máfias internacionais" e, segundo suspeitam as autoridades, também por insurgentes e guerrilheiros pró-Assad. Ela afirma que a organização está trabalhando com a Interpol, o povo sírio e os tecnocratas responsáveis do Diretório Geral de Antiguidades e Museus da Síria para acompanhar os danos e recuperar artefatos roubados.
As autoridades interceptaram centenas de antiguidades sírias contrabandeadas em Beirute, incluindo dezenas saídas de Palmira, e a UNESCO está analisando a denúncia do governo sírio de um conjunto de moedas islâmicas medievais que foi posto à venda pela Sotheby's ? mas o Conselho de Segurança da ONU ainda tem que efetivar a recomendação de proibir o comércio de todos os artefatos de origem síria, como aconteceu com o Iraque durante os anos de guerra.
- Agora não é a hora de comercializar objetos sírios; qualquer coisa, por menos que seja, é considerada suspeita, diz ela.
Os 32 museus arqueológicos da Síria guardaram suas coleções, mas há casos de saques em pelo menos três deles. Em Raqqa, controlada por grupos islamitas estrangeiros, a suspeita é a de que alguns objetos tenham sido destruídos por causa de objeções religiosas à procedência pagã ou retrato de criaturas vivas, explica Ahmad Deeb, diretor do setor de museus do Ministério da Cultura.
Às vezes, as antiguidades têm melhor tratamento nas áreas sob o controle dos insurgentes locais, que provavelmente lhes dão o devido valor. Em Maarat al-Noaman, os rebeldes que ocupam um museu cheio de mosaicos famosos recebem dinheiro do governo para preservá-los.
- Estão fazendo todos os tipos de acordos, conta ele.
Em Palmira há habitações humanas de 500 mil anos e templos construídos há milênios. Entre as civilizações que passaram por ali está a que foi governada brevemente pela rainha Zenóbia, que se revoltou contra os romanos. Muitos moradores, inclusive muçulmanos, consideram sua história a continuação desse patrimônio.
- Dentro de nós há algo muito antigo, diz Sheik Ahmed Dagher Abu Ali, membro do Parlamento, ao mostrar aos visitantes o museu vazio e as estátuas da divindade local, Allat, e sua equivalente grega, Atena.
- Proteger esse patrimônio dos extremistas que lutam a pouco mais de 30 quilômetros daqui é nossa responsabilidade. É preciso cuidar dele em nome de todas as civilizações do mundo.
Agora que os beduínos e seus camelos se foram, as ruínas estão vazias, com apenas alguns soldados fumando sobre as pedras, aqui e ali. No museu, um oficial de uniforme verde se encontra sentado à mesa do diretor, Hariri, que estava ao seu lado.
É ele, aliás, que mostra quatro esculturas do século I confiscadas recentemente de um bando de ladrões. Ali ao seu lado, aponta para os frisos que mostram mulheres enfeitadas na parede, revelando que são suas peças favoritas.
Quando pergunto o motivo, ele diz simplesmente: - Porque elas são lindas.