
Considerado uma conquista dos direitos humanos, o regime semiaberto - que tira o preso do confinamento permanente da prisão e proporciona a reinserção gradual na sociedade - entrou em colapso. Sem penitenciárias preparadas para oferecer trabalho e sem vigilância adequada, é consenso entre especialistas que o modelo fracassou no Brasil e chegou a hora de rediscuti-lo.
Em vez de ressocializar, o semiaberto virou uma porta giratória para a impunidade, onde os apenados entram e saem quando querem, cometem crimes e ameaçam agentes que ousam desafiá-los.
Nesta reportagem, veja o que pensam as pessoas que podem mudar essa realidade, entenda o que está sendo discutido em Brasília e saiba por que a situação chegou no limite.
Elisandro Taquatia de Matos, 33 anos, e Anderson Rodrigues Barbosa, 31 anos, são criminosos experientes, com condenações que somam 62 anos e seis meses por roubos, extorsões, receptações e porte de arma. Mas não é só na repetição de delitos que eles se especializaram.
Desde que ganharam o direito de cumprir as penas no regime semiaberto, eles fugiram 16 vezes de diversas cadeias do Rio Grande do Sul. Elisandro e Anderson foram recapturados cometendo os mesmos crimes e engrossam uma estatística que demonstra o descaso do Estado com o que deveria ser uma chance real de regeneração e volta ao convívio.
Os números divulgados pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) mostram que, em 2013, o semiaberto teve 3.585 fugas, o que representa 62% da população carcerária desse regime (5.768). Em 2012, foram 3.646 e, em 2011, 4.884. Pela lei, as cadeias deveriam ter cercas ou muros altos, portões de ferro e controle de saída.
Na prática, são alojamentos desprotegidos, que não oferecem aos apenados perspectivas de uma nova vida. Para a Justiça, o Estado não está preocupado com as consequências do descontrole. Para a sociedade, a descrença chegou a níveis alarmantes.
No Congresso, a reforma da Lei de Execução Penal (LEP) é discutida como solução para o caos, mas especialistas sustentam que é preciso ir mais a fundo no problema. Ainda há tempo, pois o Congresso pretende votar a nova LEP no primeiro semestre. Subprocurador-geral da República e membro do Ministério Público Federal, Carlos Eduardo Vasconcelos afirma:
- O nosso sistema tem um paradoxo: é um dos mais desumanos do mundo e um dos mais generosos no cumprimento das penas. Nossas regras de progressão são liberais.
Para Vasconcelos, os tribunais superiores praticamente extinguiram a diferença entre os crimes comuns e hediondos.
- Nossas marcas são o "coitadismo penal" e o "cafuné processual". As ameaças contidas nas penas são inócuas na prática. É preciso investir no sistema e acabar com suas contradições - complementa o subprocurador-geral da República.
O regime existe no Brasil desde o Código Penal de 1940, que estipulou a progressão: fechado (o preso não sai e trabalha internamente), semiaberto (trabalho em colônias agrícolas, industriais ou estabelecimentos semelhantes com possibilidade de saída autorizada judicialmente) e aberto (passa o dia fora e dorme em albergues).
O problema é que as colônias agrícolas ou industriais não têm estrutura mínima para que a filosofia funcione e, ao contrário das penitenciárias de regime fechado, têm vigilância pífia e poucos agentes. Assim, a progressão é ideal apenas na teoria.
- O semiaberto nasceu em um período de rigor punitivo, em uma época em que se acreditava que a prisão podia melhorar uma pessoa. Falar em diminuir as penas no Brasil, hoje, é algo utópico. Na história do direito penal, isso é tido como humanização. A pena foi concebida com o argumento de ressocializar e teve o efeito contrário - argumenta o juiz Luís Carlos Valois, doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Membro do Fórum da Questão Penitenciária, o professor de Direito Penal da PUCRS
Rodrigo de Oliveira ressalta que o problema não é o regime, e sim as dificuldades de implementação. Descrente em uma solução a curto prazo, ele fala que apenas com uma grande ampliação de vagas nos presídios fechados é que o Brasil dará um passo concreto para humanizar seu sistema penitenciário:
- Temos um universo projetado para uma norma que o Executivo não materializa. Só vamos ter o regime fechado? Muito bem, qual impacto que isso teria?
Para Oliveira, colapso chegou a um nível nunca antes visto. Ele complementa, em tom pouco otimista:
- Sinceramente, não enxergamos a luz no fim do túnel.
Congresso discute penas alternativas
À frente da Delegacia de Capturas do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) nos últimos seis anos, o delegado Eduardo de Oliveira Cesar diz estar acostumado a prender foragidos do semiaberto.
Desde 2013, a Capturas retirou das ruas 368 pessoas no Estado. Desse total, "um número expressivo", de acordo com Oliveira, deveria estar detido:
- São ladrões de cargas, assaltantes perigosos, estupradores, homicidas. Já pegamos um homem com 10 fugas. Lembro que demoramos um ano para prender o assaltante de carro forte Igor Machado, em Santa Catarina. Quando colocaram ele no semiaberto, fugiu no mesmo dia.
Um dos primeiros bandidos a usar arma de grosso calibre em ataque a banco, Igor escapou do Instituto Penal Escola Profissionalizante (Ipep), em Charqueadas, em 2009.
Em dezembro do ano passado, uma comissão de juristas tocou na ferida e entregou ao Senado um projeto para reformar a Lei de Execução Penal (LEP) com o objetivo de diminuir a superlotação dos presídios e incentivar a adoção de penas alternativas.
Um grupo de juízes, encabeçado por Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, propôs o fim dos regimes aberto e semiaberto, mas a comissão rejeitou. A expectativa é de que ainda no primeiro semestre de 2014 o
Senado discuta e vote a nova LEP.
- Eles mexeram na "perfumaria" e não na estrutura. Falta coragem de enfrentar. Não adianta mais insistir em algo que não foi executado verdadeiramente. É um faz de conta exatamente no momento em que o condenado volta a ter contato com a sociedade. A chaga da população é o crime violento. Têm de existir penas mais severas para isso - lamenta Brzuska.
A relatora do anteprojeto, promotora Maria Tereza Uille Gomes - atualmente secretária da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Paraná -, entende que falta um modelo de gestão nacional para o semiaberto. Ela critica o improviso dos Estados para lidar
com essa realidade:
- Não existe um modelo arquitetônico para o semiaberto. Cada um adota ou improvisa, faz a reforma de uma unidade, adapta provisoriamente, não tem um modelo definido.
Para o doutor em Sociologia e professor de Direitos Humanos na Rede Metodista de Educação do Sul (IPA) Marcos Rolim, mesmo com a descrença da população e da polícia, acabar com a progressão de regime é "bobagem":
- Só pode caber na cabeça de quem não tem a menor ideia do que fala, principalmente alguns magistrados, que parecem viver no mundo da lua. Há uma questão prática: onde colocar os presos? Tem uma conta para fechar, que custa bilhões de reais.
Para Rolim, a grande questão é pensar em diminuir o encarceramento.
- Sempre que o Congresso se debruça sobre o tema, a legislação piora pelo populismo. O Código Penal virou uma colcha de retalhos.
Contraponto
O diretor de Departamento da Superintendência dos Serviços Penitenciários, Irineu Koch, reconhece as falhas na infraestrutura e na fiscalização e argumenta que a solução momentânea está no uso das tornozeleiras eletrônicas. Cada detento do semiaberto custa hoje R$ 1,2 mil ao Estado por mês. Com o monitoramento eletrônico, o valor baixaria para R$ 400:
- Não temos a vigilância do fechado. As barreiras que impedem as fugas não são iguais. A própria legislação possibilita isso. A saída é a tornozeleira eletrônica, que acompanha o preso em tempo real. Acreditamos que, com ela, o índice de fuga pode cair para 2,5%. As facções são enfraquecidas com a tecnologia, já que os apenados ficam diluídos. Pretendemos que, até o final do ano, o semiaberto (5,7 mil presos) seja coberto com elas. Estamos investindo em vigilância por câmeras.