
A Ilha da Torotama, um povoado de 1,2 mil habitantes localizado em Rio Grande, no sul do Estado, está em polvorosa. Não pode mais morrer ninguém - quer dizer, tem lugar apenas para mais um. Quem morrer primeiro garante a vaga para o sono eterno na última gaveta vazia do cemitério. Os próximos terão que descansar em paz em outras covas, distantes dali.
É uma Sucupira ao contrário. Na fictícia cidade baiana criada pelo dramaturgo Dias Gomes em 1970, cenário da novela O Bem Amado, a expectativa era de que alguém morresse logo para que o cemitério fosse finalmente inaugurado. Na real Torotama, a torcida é para que ninguém passe dessa para melhor até que o problema seja resolvido.
Os moradores querem, pelo menos, as seis novas gavetas prometidas pela Secretaria de Controle e Serviços Urbanos de Rio Grande. Não é muito, mas daria um pequeno sopro de alívio àqueles que estão por enterrar parentes doentes. Quem goza de perfeitas condições de saúde tem pisado em ovos, prestando atenção em cada passo que dá: ninguém quer dar chance à morte por acidente. Aliás, se dois disserem adeus ao mundo no mesmo dia, o jazigo vai ter de ser decidido no par ou ímpar.
A situação é preocupante, ainda mais para uma comunidade que ainda cultiva hábitos fúnebres de décadas atrás: velório na capela e cortejo de 300 metros, a pé, até o cemitério onde jazem 800 pessoas - 700 literalmente debaixo da terra; 100 engavetadas. Quem viveu e cresceu na Torotama, a 40 quilômetros do centro de Rio Grande, não admite sepultar os seus em outro lugar.
- Aqui é tudo em família. Ninguém tem dinheiro para enterrar um familiar no Povo Novo, que é o mais próximo daqui - diz o agricultor Adilco Vinagre, 60, que tem pai e irmã espichados no cemitério local, que cobra apenas R$ 10,00 de contribuição dos familiares dos mortos, a cada cinco anos.
Assombração é não poder reservar lugar
Tinha espaço de sobra na área de pouco mais de 1km² até que, em 2010, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) proibiu sepultamentos no chão. Quem já estava lá, como dona Belarmina, seu Algeniro, dona Ondina e seu Gerônimo (nas lápides constam apenas os primeiros nomes e todo mundo sabe quem é quem), ficou. Mas não se põe mais ninguém sob o solo. Só nas gavetas.
- Quando tem - brinca o coveiro Ailton Rocha Machado, 62 anos, há nove responsável pelo cemitério.
É ele quem mantém o capricho e a ordem do lugar. Se as cores vívidas das flores de plástico espantam aparições sobrenaturais, garantindo um clima pouco pesado (e até alegre, arriscam dizer), a última gaveta tem lhe sido uma verdadeira assombração.
- Tem gente que quer comprar, deixar reservada. Mas não pode. Esse buraco aqui é do primeiro que morrer. Deus que me perdoe, mas pode ser até eu. Não dá para prever.
A construção de seis novas gavetas está no cronograma da secretaria de Serviços Urbanos, mas sem prazo definido, de acordo com o titular Nilson Pinheiro. O presidente da Associação de Moradores da Torotama, Luiz Carlos Pedroso da Silva, também quer que seja erguido um pequeno banheiro e um abrigo para o coveiro. Todos os mortíferos impasses do cemitério da Ilha da Torotama serão discutidos em audiência pública na Câmara dos Vereadores de Rio Grande, marcada para a próxima quinta-feira.
- Que não morra ninguém até lá - torce Pedroso.