
O que um incêndio e um naufrágio têm em comum? No caso da boate Kiss, em Santa Maria, e do ferryboat Sewol, na Coreia do Sul, muito. Uma sucessão impressionante de coincidências marca as duas histórias e serve de alerta para o mundo: grandes tragédias, com raras exceções, são o resultado de erros que se repetem. E que poderiam ter sido evitados.
A balsa naufragou em 16 de abril, depois de uma manobra brusca na costa sudoeste do país. Ao todo, 325 ocupantes eram estudantes de Ensino Médio. Mais de 240 corpos foram resgatados sem vida.
A morte de jovens e a comoção decorrente da catástrofe se assemelham ao drama vivido no Rio Grande do Sul, onde foram contabilizados 242 óbitos, um ano e três meses antes. Mas as similaridades não terminam aí.
Nas duas situações, fatores relacionados ao despreparo das equipes potencializaram a desgraça, tanto quanto falhas na comunicação e nas ações de salvamento (leia mais abaixo). Há ainda uma outra coincidência, nada honrosa.
Se no ferry o comandante fugiu antes de concluído o socorro às vítimas, na casa noturna um dos proprietários também abandonou o barco em meio à confusão, com medo de represálias. A atitude lembra um terceiro episódio, transcorrido em 2012, na Itália: a derrocada do cruzeiro Costa Concordia, cujo capitão escapou de fininho e acabou repreendido com um sonoro "vada a bordo, cazzo!".
- Fica claro, em todas essas circunstâncias, que uma das principais falhas está na falta de treinamento. As pessoas não sabem como agir em emergências, e esse é um dos equívocos mais banais - avalia Antônio Edésio Jungles, diretor do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mas há algo mais por trás da cultura do "salve-se quem puder". É o que o geólogo Renato Eugenio Lima, da United Nations Disaster Assessment and Coordination (Undac), chama de "excesso de autoconfiança".
- Quando analisamos as causas de grandes tragédias, o que mais se vê é gente que achava que tinha tudo sob controle e que as normas de segurança eram apenas uma formalidade. Não pode haver engano maior - pondera Lima, que também é secretário do Meio Ambiente de Curitiba.
A soberba está associada a um equívoco ainda mais grave, na avaliação do pesquisador Moacyr Duarte, coordenador do Grupo de Análise de Risco Tecnológico e Ambiental da Coppe/UFRJ. Tecnicamente, tudo se resume, segundo ele, à atenção dada ao chamado "plano de emergência".
Esse documento é uma espécie de esquema tático elaborado por especialistas para minimizar os riscos em determinadas atividades. É a estratégia a ser seguida em situações-limite.
- Os dois casos envolveram planos que não foram seguidos por falta de preparo ou planos ruins, talvez até inexistentes. Em qualquer situação, esse é um erro fatal - afirma Duarte.
Um ano e três meses antes do naufrágio, em Santa Maria, outra tragédia abalou o mundo

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O naufrágio
O ferryboat Sewol afundou em 16 de abril deste ano, na costa da Coreia do Sul, com 476 passageiros a bordo. Mais de 240 mortes foram confirmadas.
O incêndio
A boate Kiss pegou fogo na madrugada de 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, com mais de 800 pessoas dentro. Ao todo, 242 morreram.
As coincidências
Falta de treinamento
O despreparo das equipes da boate e do ferry para agir em emergências selou o destino das vítimas. Na Kiss, os frequentadores não foram orientados sobre como agir. Dezenas foram em direção ao banheiro, pensando se tratar da saída. Na balsa, só 30 minutos após o naufrágio foi dada ordem de evacuação. Antes, tripulantes mandaram as pessoas ficarem nos lugares.
Falhas na comunicação
Houve demora na comunicação sobre o que estava acontecendo. Na Kiss, os seguranças não usavam radiocomunicadores e, no início, alguns não se deram conta dos riscos - tanto que a porta ficou fechada para evitar que as pessoas saíssem sem pagar. No ferry, quando saiu a ordem de retirada, nada foi dito sobre como os passageiros deveriam deixar a balsa.
Erros no salvamento
Em Santa Maria, faltaram socorristas e equipamentos. Civis arriscaram as vidas para salvar vítimas e não foram impedidos pelos bombeiros. Muitos morreram. Na costa sul-coreana, o socorro demorou 40 minutos. Quando chegou, a maioria já havia afundado com o ferry. Aqueles que saltaram antes sobreviveram graças a ajuda de barcos de pesca.
Morte de jovens
A maioria dos passageiros da balsa era formada por alunos de 16 e 17 anos de uma escola secundária da cidade sul-coreana de Ansan e participava de uma excursão para a ilha turística de Jeju. Na tragédia da boate Kiss, os 242 mortos eram, em sua maioria, estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), muitos deles colegas de turma na faculdade de Agronomia.
Comoção nacional
O desfecho abalou a população e teve grande repercussão tanto lá, quanto aqui. Santa Maria, até hoje, convive com o luto. Na Coreia do Sul, a presidente Park Geun-hye pediu desculpas publicamente pelo fracasso de seu governo ao não evitar o acidente. Aqui, a presidente Dilma Rousseff esteve pessoalmente em Santa Maria para se solidarizar com as famílias.
Indícios de negligência
O capitão Lee Joon-seok não estava na sala de controle durante a manobra desastrada que precedeu o naufrágio, embora soubesse que a embarcação passava por uma zona crítica. No caso Kiss, os indícios de irresponsabilidade são inúmeros. Incluem a falta de uma saída de emergência e a instalação de espuma tóxica no interior da boate.
Prisão de responsáveis
Pessoas diretamente ligadas a ambas as tragédias foram presas. Na Coreia, membros da tripulação, incluindo o capitão, acabaram detidos. Em Santa Maria, os donos da boate e dois integrantes da banda que deu início ao incêndio tiveram o mesmo destino. Hoje, todos respondam a processo em liberdade.
Mas nem tudo se repetiu...
Na Coreia do Sul, o premier Chung Hong-won pediu demissão e reconheceu as falhas do governo. Afirmou que "a coisa certa a fazer" era "assumir a responsabilidade e renunciar". Aqui, nenhuma autoridade adotou postura semelhante, apesar da pressão das famílias.