Casos de crianças humilhadas, ameaçadas com facas, machucadas e vítimas dos mais diversos tipos de violência dentro de casa - por pais ou cuidadores - são mais frequentes do que se imaginava no Brasil. Os dados do 2° Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e divulgados nesta quarta-feira, alarmaram os pesquisadores e mostraram, pela primeira vez, o quanto o Brasil é uma nação de pais violentos.
Conforme o estudo, 21,7% da população - um a cada cinco brasileiros, o que representa mais de 30 milhões de pessoas - sofreu algum tipo de abuso quando criança.
O consumo excessivo de álcool e outras drogas está no DNA das agressões. Os entrevistados relataram que, em 20% das situações de violência física, o parente ou cuidador havia bebido, deixando marcas que perduraram pela vida adulta - o risco de essas vítimas se tornarem dependentes drogas é duas vezes maior do que a população em geral.
Entre os usuários de álcool, o percentual que sofreu violência infantil sobre para 45,7% , chega a 47,5% entre os usuários maconha e a 52% em cocaína. E, quando o tipo de abuso é sexual, os números são ainda mais assustadores, relata Clarice Madruga, pesquisadora da Unifesp e coordenadora do estudo:
- Dependendo do tipo de abuso, como a violência sexual, as chances de a criança se tornar um dependente de drogas podem ser até quatro vezes maiores. Temos dados que mostram que, entre usuários de crack em tratamento, a porcentagem que sofreu traumas gerados pelos pais chegou a 70%.
O levantamento ouviu 4607 maiores de 14 anos em 149 municípios brasileiros e indicou que o Brasil possui um dos mais altos percentuais de agressões de pais ou cuidadores contra crianças e adolescentes quando comparado a outras nações. Apenas uma pesquisa realizada em comunidades hispânicas nos Estados Unidos chegou a indicativos semelhantes, afirmou Clarice:
- Esta é a primeira vez que temos dados representativos nacionalmente sobre o assunto, e os números são preocupantes. Percebemos que é um comportamento cultural, independente da classe social ou nível de educação dos entrevistados.
Uma minoria dos casos chega a ser registrada
Segundo a pesquisa, as meninas são as principais vítimas. Ao menos 20% das entrevistadas relataram que sofrem ou já sofreram algum tipo de agressão. Entre os tipos de abusos mais comuns, estão os empurrões, beliscões e arranhões. Em 11,9% dos casos, entretanto, os menores relataram que já apanharam até ficar com marcas pelo corpo. E, para agravar o problema, apenas 20% dos casos são reportados à polícia, afirma a pesquisadora:
- Muitas crianças aparecem em hospitais machucadas, com roxos ou membros quebrados, e os médicos não questionam a origem da violência. O que chega à polícia são casos mais graves, que envolvem morte. Essa falta de suporte faz com que as crianças sofram caladas por mais tempo, o que as leva a desenvolver quadros de depressão, adição à drogas e até mesmo suicídio.
Para Joana Narvaez, psicóloga da Unidade de Adição Álvaro Alvim, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, os dados da pesquisa confirmam a rotina de atendimento e mostram que a adição às drogas, preponderamente ao crack, representa um sintoma antes de tudo social.
Conforme Joana, este cenário denuncia a necessidade de ações em diversos âmbitos em termos de prevenção e proteção as vítimas de violência infantil, além de suporte às famílias, políticas publicas ineficientes neste sentido colaboram para o alto índice de dependentes químicos:
- Jovens que sofrem traumas, que não tem ainda recursos psíquicos para dar conta da situação e que vivem em um ambiente sem adequada proteção ficam mais suscetíveis a buscar nas drogas uma fonte de anestesia, de alivio - comenta.
Os pesquisadores que realizaram o levantamento apontam que o quadro constatado mostra a necessidade de investimentos para que escolas e unidades de saúde tenham condições de detectar crianças que estejam sendo vítimas de violência por parte de familiares.
- O primeiro passo é a prevenção primaria, que significa educação. É preciso esclarecer aos pais que reforçar as atitudes positivas das crianças é muito mais eficaz do que punir as atitudes negativas. Nos casos em que a violência ocorre, é necessária uma rede de proteção e acompanhamento para estas famílias. A prevenção pode, em apenas uma geração, diminuir nossos problemas com abuso de substâncias psicotrópicas como o álcool, a cocaína e o crack - resume a pesquisadora.