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Dez anos depois de o Conselho de Segurança da ONU ter implementado a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), em 1º de junho de 2004, poucos lembram que a iniciativa havia sido aprovada, em 30 de abril do mesmo ano, para durar seis meses.
A possibilidade de renovação existia. Mas, passados o terremoto devastador, a implacável epidemia do cólera e o agravamento da miséria, a missão completa uma década sob a polêmica entre quem vê avanços na segurança interna de um dos países mais pobres do mundo e quem critica a intromissão militar que inibiria a autonomia institucional.
A longevidade da missão, com seus 30 mil militares no período, provoca protestos de alguns haitianos. Parte deles quer tomar conta do próprio destino. Mas entre 65% e 80% da população planeja se mudar para o Brasil, conforme Ricardo Seitenfus, representante no Haiti da Organização dos Estados Americanos (OEA) entre 2009 e 2011.
Em setembro de 2011 e em maio de 2013, o senado haitiano aprovou resoluções exigindo o fim da Minustah. A ONU, porém, pretende manter as tropas no país até 2016, algo que, na definição do senador haitiano Jean-Charles Moise, equivale já a uma "ocupação", que deveria ser encerrada pela "substituição dos tanques de guerra por tratores agrícolas".
Seitenfus, que está lançando o livro Haiti: Dilemas e Fracassos Internacionais (Editora da Unijuí), define a Minustah como "uma das piores missões de paz da história".
- Foram enviados soldados para onde não havia e não há guerra. Portanto, o desafio haitiano é socioeconômico e institucional. Não há como estabilizar um país com 80% de desemprego, com 50% de analfabetismo - critica Seitenfus.
Além da situação socioeconômica e da necessidade de tomar conta do próprio destino, os haitianos se amparam em estudos para reclamar que a bactéria do cólera foi levada por militares nepaleses da Minustah.
É algo que a ONU jamais reconheceu, rejeitando indenizações. Mas não fica nisso. Haitianos relatam casos de abuso sexual e excessos na repressão por integrantes da missão. E fazem coro com Seitenfus: criticam a instituição da Minustah, sob o capítulo 7 da Carta da ONU, que sustenta o uso da força em caso de "ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão". Por que a crítica? Porque dizem não haver justificativa para a intervenção internacional, nem antes nem depois da queda do presidente esquerdista Jean-Bertrand Aristide.
Governo viu chance de ser referência regional
Seitenfus ainda vê um vício de origem. Refere-se ao acordo de 9 de julho de 2004 entre a ONU e o governo haitiano. O documento foi assinado pelo então premier, Gérard Latortue, e não pelo presidente, como previa o artigo 139 da Constituição.
Pelo Brasil, a Minustah foi vista como oportunidade. Era a chance de projetar o país como líder regional, numa missão de estabilização depois da frustração em relação à do Timor Leste, que não prosperou em razão da crise econômica de 1999. O país foi ao Haiti de olho na cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Antônio Jorge Ramalho, assessor do governo e professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB), considera positiva a participação brasileira.
- O Brasil projetou sua imagem e sua bandeira. Mostrou capacidade de ação, o que é muito relevante. Conteve uma violência disseminada sem danos colaterais. Isso o coloca como um país respeitado quando se cita operações das Nações Unidas - diz.
Quando os militares brasileiros chegaram ao Haiti, a vulnerabilidade era tal que o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, cogitou ser uma missão com data para começar, mas não para terminar. Hoje, mesmo reconhecendo a importância da Minustah, os analistas coincidem quanto à necessidade de criar um planejamento para deixar o país, dando a suas instituições a tão sonhada autonomia.
Por dentro da missão
Nome: Minustah é Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti, em francês (idioma local).
Integrantes: são hoje 1.173 brasileiros do total de 5.824 soldados da missão. Ainda há 2.425 policiais da ONU, 437 civis, 1.302 haitianos e 195 voluntários.
Precedente: em 2001, em pleito na qual 10% da população votou, Jean-Bertrand Aristide se elegeu presidente. Houve uma crise.
Criação: 30 de abril de 2004 (resolução 1.542). Implementada em 1º de junho, após exílio de Aristide, ex-padre ligado à Teologia da Libertação.
Principais objetivos: estabilizar o país, favorecer eleições, fomentar desenvolvimento e desarmar milicianos.
Custo e retornos: em 10 anos, o Ministério da Defesa diz que o Brasil investiu R$ 2,1 bilhões na missão e recebeu, como retorno da ONU, US$ 333,9 milhões (R$ 740 milhões).
Mortos na missão: 38 em 10 anos.
Efeito terremoto: 200 mil mortos em janeiro de 2010, com 2,3 milhões de desabrigados. Na época, discutia-se a retirada. O Estado haitiano saiu de cena, e aumentou a militarização.
Custo terremoto: em 2004, o Brasil gastou R$ 148 milhões com a Minustah. Depois do terremoto, em 2010, o valor foi a R$ 673,9 milhões. O estrago total do terremoto foi de US$ 7,8 bilhões (R$ 17,3 bilhões).
O Haiti: primeira nação a abolir a escravidão, fica no Caribe, tem 10 milhões de habitantes e se localiza no oeste da Ilha Hispaniola (no leste, está a República Dominicana). Teve ditaduras pró-EUA como contrapeso a Cuba. A capital é Porto Príncipe.
Índices sociais: 145º entre os 182 países avaliados pelo IDH em 2010.
Economia: 80% da população (8 milhões) sob a linha da pobreza. Dois quintos vivem da microagricultura.
O Brasil projetou sua imagem, diz Ramalho
Antônio Jorge Ramalho, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), foi diretor de cooperação do Ministério da Defesa e implantou o Centro de Estudos Brasileiros em Porto Príncipe. Vê a Minustah como positiva.
Como o senhor avalia a participação brasileira?
O Brasil deu uma contribuição positiva e projetou sua imagem. Mostrou capacidade de ação, o que é muito relevante. Conteve uma violência disseminada sem danos colaterais. Isso coloca o Brasil como um país respeitado quando se citam operações das Nações Unidas. O país deixou uma imagem de profissionalismo. Não por acaso, a ONU escolheu o general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz (que, inclusive, comandou as tropas da Minustah entre 2006 e 2009) para comandar a brigada de intervenção na República Democrática do Congo, com autorização de usar a força para impor a paz. Claro que isso se deve ao bom desempenho do Brasil no Haiti.
Como será a saída?
É um fim pausado, cauteloso, com parcimônia. Há transferência para a polícia nacional do Haiti. No ano que vem, haverá eleições. O trabalho não termina. Há já uma mudança de foco, da ajuda militar de combate para a de engenharia, além de ajuda na saúde, na agricultura e outros setores. Ações vão continuar.
O que se pode esperar que ocorra no Haiti a partir da retirada da missão?
Vamos ver como o Haiti absorve essa retirada gradual, com a redução da missão internacional. Kofi Annan (ex-secretário-geral da ONU) chegou a dizer que havia ali uma tarefa para duas décadas. Por essa perspectiva, estamos, em tese, no meio do caminho. O objetivo da missão é de que haja autonomia de gestão por parte dos haitianos. Muitos dos empreendendores, dos profissionais mais capacitados, deixaram o país, naquilo que chamamos de fuga de cérebros. Trata-se de um problema e de um desafio. Tenho dúvidas sobre o real interesse da elite haitiana em promover a estabilidade do país.
Qual é o problema envolvendo a elite do Haiti?
É uma elite dividida, parte dela vive às custas da ajuda internacional. Há muito ceticismo quanto a ela, até porque é uma elite que domina o país desde a ditadura de Duvalier (François Duvalier, conhecido como Papa Doc, apoiado pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, instaurou uma ditadura feroz, sendo substituído pelo filho, Jean-Claude Duvalier - o Baby Doc). É possível que a saída da missão brasileira ocorra gradualmente a partir de 2016, mas precisávamos já ter um plano de saída claro, porque se trata de um trabalho continuado.
É uma das piores missões da ONU, afirma Seitenfus
Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), representou a Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011. É um crítico da Minustah.
Como o senhor vê a perspectiva de saída em 2016?
O desenvolvimento do Haiti tem de ser feito pelos haitianos. Ser solidário não é substituir, é acompanhar. É bom que se acene com a restauração da soberania haitiana e se ponha termo à presença militar estrangeira da Minustah. Deve-se respeitar a autodeterminação do povo e do Estado haitiano com o processo de apropriação de seu país.
Quando deve ser a retirada?
Discutíamos um modelo de saída quando o terremoto de 12 de janeiro de 2010 jogou o debate para as calendas gregas. Agora se retorna a ele, felizmente. Mais do que uma data-limite, o que importa são as condições da saída, como sair. O desafio haitiano é socioeconômico e institucional. Não há como estabilizar um país com 80% de desemprego e com um Estado que é muito mais uma ficção do que uma realidade. É importante a ONU deixar o Haiti. O país precisa ter tempo para construir a democracia deles. Querem democracia perfeita em um país onde há 50% de analfabetismo?
Como o senhor vê a missão?
A missão no Haiti é uma das piores missões de paz da história da ONU. Se saírem em 2016, deixarão um país pior do que encontraram em 2004. Saí do Haiti porque me opunha à intervenção na política interna do país, me desentendi por causa disso. Até o cólera foi levado para lá. Essa intervenção foi triste e pesarosa. Nada melhorou.
O que o Brasil deve fazer?
Deve liderar o debate com seus parceiros por uma solução rápida. Se isso não ocorrer, o Brasil deve renunciar ao comando da Minustah e retirar seu contingente. Cada dia que passa nos desgasta mais. Gasta-se um capital imenso de reconhecimento e respeitabilidade.
O que deve fazer o Haiti?
Uma reforma constitucional, para desincompatibilizar as funções de presidente e primeiro-ministro (nomeado pelo presidente). O presidente acaba precisando de uma maioria parlamentar, e o parlamento considera o premier um contrapoder. A ONU deve garantir um pacto de governabilidade.