Deitado no divã, o Brasil não seria um, mas dois brasis.
Autora do livro O País da Bola, a psicanalista e escritora Betty Milan faz a distinção entre esses dois conhecidos que subsistem paralelamente para explicar o papel do futebol no imaginário nacional - e o controverso uso político do futebol ao longo da história:
O primeiro seria o Brasil, o país oficial, com seus problemas e dilemas cotidianos. O outro seria o "Braaasilll, que é o país do carnaval e do futebol e é sempre vitorioso".
- Claro que o Brasil procura capitalizar as vitórias do Braaasilll, mas este é profundamente independente - sustenta Betty, referendando a ideia de que a Copa não tem interferência significativa dos resultados eleitorais.
- Quando a Copa terminar, vamos ter a memória de um espetáculo único, mas vamos cair na real imediatamente, e o voto será em função disso. É importante deixar a Copa acontecer. A trégua durante os jogos faz parte do espírito da civilização, que é datada das Olimpíadas na Grécia - observa.
Para exemplificar essa relação de independência entre os dois brasis, ela cita um episódio ocorrido em 1927, quando, de cartola e casaca, o então presidente Washington Luís foi ao estádio do Vasco, na época o maior da América do Sul, para assistir ao confronto entre Rio e São Paulo.
"O jogo começa, mas não dura. É subitamente interrompido por causa de um pênalti contra a equipe de São Paulo, que ameaça abandonar o campo. O presidente Washington Luís envia seu chefe de gabinete exigir dos jogadores que continuem no jogo. Indignado, o capitão Feitiço responde que lá em cima, na tribuna de honra, mandava o Doutor, já embaixo o mando era do mulato Feitiço, que, aliás, tirou imediatamente o time de campo", descreve a autora em seu livro.
Na contramão da tese de que o futebol seria o ópio do povo, Betty acredita que o Brasil deveria aprender as lições do futebol, um lugar onde as leis são respeitadas.
- Através do futebol é possível ensinar a importância do limite, porque o jogo faz valer a regra. O Braasilll mostra que a lei é a mesma para todos e que o que conta é o mérito - elogia.
Do estádio às ruas
Reconhecendo a importância do futebol como construtor da identidade nacional, o professor Flávio de Campos, coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas da USP, destaca que a articulação entre Copa e política teve como um de seus efeitos fazer chegar à boca do povo três conceitos antes restritos às ciências sociais: "megaevento", "legado da Copa" e "mobilidade urbana".
Outro sinal de articulação entre os estádios e as ruas, segundo Campos, é que os coros que embalaram as manifestações de rua imitavam a gestualidade e a vocalidade das arquibancadas.
- Quando os manifestantes gritavam: "Pula, sai do chão, contra o aumento do busão", era uma paródia aos cânticos dos estádios: "Pula, sai do chão, faz ferver o caldeirão". Assim como "O povo acordou" é uma paródia de "O campeão voltou" - compara.
Mesmo em tempos de censura, o futebol também foi usado como espaço de resistência. Curadora da exposição Política F.C. - O futebol na ditadura, a jornalista Vanessa Gonçalves lembra que, assim como os governantes usavam o futebol para tentar aumentar seu prestígio, houve casos no sentido inverso.
- É um discurso raso dizer que é alienante, o futebol é um espaço de mudança para muitas coisas. A torcida do Corinthians fez campanha pela anistia em 1979 e há vários casos de personagens do esporte que lutaram contra a ditadura, como o jogador Nando, irmão de Zico, que foi preso por ter participado do plano de alfabetização nacional e anistiado em 2011. Negar a Seleção é querer tirar uma parte da nossa cultura - sustenta.
Ao pesquisar a criação do campeonato brasileiro, uma obra dos militares, o professor de História do Clio Internacional Daniel de Araujo dos Santos também observou uma via de mão dupla.
- A ditadura usou o futebol, mas o futebol também usou a ditadura - conclui Santos.