Geral

Aluno nota 10

Menino que morava sob ponte ganhou uma casa própria

História do estudante que sonha em ser médico movimentou uma rede solidária que conseguiu um novo teto para ele

Fernando Gomes / Agencia RBS
José Luiz, ao lado do padrasto, dos irmãos e da mãe, agora entra em uma fase de novos desafios

O caminhão de mudança vai embora e José Luiz Camboim Moni, 16 anos, começa a arrumar os pertences na casa nova. Percorre as peças com avidez. Entra no cômodo colado à cozinha e desacelera o passo, acomodando uma mala preta em cima do cobertor azul que reveste a cama. Dela, tira o notebook e o ajeita sobre uma mesa de canto. Declara:

- Este é o meu quarto.

Há um ano, o adolescente morava com a família debaixo de uma ponte da BR-116 em Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre. A história de dedicação de um aluno nota 10 que lutava contra as adversidades para se manter bem na escola e persistir nos seus objetivos de se tornar médico desencadeou uma engrenagem de solidariedade. Em meio a muitas doações de alimentos, calçados, roupas, materiais escolares, um médico propôs a colegas da profissão que José quer seguir que se mobilizassem pela necessidade primária: dar-lhe uma casa. E conseguiu. A papelada foi assinada há um mês e na última quinta-feira, junto à entrega das chaves, ocorreu a mudança.

Clique e assista ao vídeo da mudança de José para a casa definitiva:

O cirurgião cardiovascular Alexandre Miranda Pagnoncelli, 49 anos, é um dos 1,2 mil integrantes do grupo Médicos Gaúchos e Colorados e publicou a ideia de conseguir a verba para a aquisição do imóvel na página deles no Facebook. Da adesão instantânea, que contou também com outros voluntários, foram arrecadados R$ 19,9 mil.

No final do ano passado, uma camiseta do jogador do Inter D'Alessandro autografada pelos colegas de time e dois ingressos para a reinauguração do Beira-Rio foram doados pelo clube para uma rifa que juntou R$ 16,3 mil.

Gente que não se conhecia nem nunca havia visto José pessoalmente apostou na educação dele e nas condições dignas de moradia com aportes robustos, como um senhor que não quis se identificar e colaborou no último mês com os R$ 15 mil que faltavam para a compra da casa.

Logo que a situação de José veio a público, em 4 de junho de 2013, por meio do jornal Zero Hora, o menino foi convidado pelo programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, para participar do quadro Agora ou Nunca. Viajou de avião pela primeira vez, conheceu o Rio de Janeiro e ainda faturou R$ 20 mil no desafio, quantia também empregada na compra da moradia.

José passou de miserável para proprietário de imóvel. Tem em seu nome uma casa de 363 metros quadrados, com três quartos, banheiro, sala, cozinha, varanda, horta e um vasto pátio com árvores frutíferas que também servirá de abrigo para a mãe Tatiana, 36 anos, o padrasto Vanderlei de Oliveira, 54 anos, e os irmãos Mateus, 14 anos, e Jorge, 12 anos.

Na índole, o menino pouco mudou. Segue tímido, caseiro e modesto nas expectativas. Nos estudos, as notícias não são tão animadoras. O primeiro trimestre chega ao final sem que tenha conseguido alcançar os objetivos. A vice-diretora da Escola Estadual José Loureiro da Silva, Graciela Gaidzinski Marques Boschin, onde José cursa o 1º ano do Ensino Médio, pondera que isso também não foge da normalidade:

- É comum os alunos sentirem este impacto quando entram no Ensino Médio. Eles vêm de escolas menores, com acompanhamento quase maternal, são chamados pelo nome, aqui a realidade é outra.

Em 2013, José concluiu o 9º ano na Escola Estadual de Ensino Fundamental Ezequiel Nunes Filho, onde dividia a atenção dos professores com outros 19 alunos, era conhecido pelo nome e tinha ligação afetiva com a maioria dos funcionários. Agora, no novo colégio, o universo se ampliou, o número de colegas dobrou, o de disciplinas também foi reforçado e José passou a ser mais um número na chamada. O parecer da escola sobre ele é de que tem se mostrado desinteressado nas aulas, que não entrega trabalhos, acumula faltas. Ruborizado, o estudante explica:

- Eu sou muito tímido, e a minha turma é muito bagunçada. Várias vezes a professora faz a chamada, eu respondo, mas acho que ela não escuta. Eu deveria falar com ela, ou gritar mais alto, mas tenho muita vergonha. Quando eu não entrego um trabalho, também não justifico. É tudo muito diferente, estranhei muito no começo, mas já estou me acostumando. Me senti mal em não ter mais boas notas.

Somou-se a isso a necessidade de trabalhar. Tatiana sustenta a casa com os R$ 352 que recebe de subsídio do governo, quantia que dá apenas para pagar as contas mais básicas, e complementa com os rendimentos do companheiro Vanderlei de Oliveira, 54 anos, que sobrevive como carroceiro. Com a atividade no estoque de um minimercado, o adolescente engrossou a renda da família em R$ 400. Fez isto por cinco meses até que Alexandre, o médico responsável pela compra do imóvel, descobriu e orientou:

- Temos de criar garantias de que o José continue tendo tempo e vontade de estudar. Trabalhar não é ruim, mas, se ele quer realmente ser médico, não pode estar cansado. É muito volume de estudo, é muito complicado passar no vestibular.

Como a ideia é seguir a tutela com o apadrinhamento, os médicos seguem depositando dinheiro na conta e ajudarão a família com os valores que José ganharia para que ele não precise trabalhar. O jovem agora pretende retomar o curso de inglês em uma escola do município, onde ganhou uma bolsa de estudos em julho do ano passado, mas só frequentou por um semestre.

- Comecei a trabalhar e ficou muito pesado, me perdi. Quando me toquei que eu estava faltando um monte, tive muita vergonha de voltar lá e falar com eles - disse.

Ainda muito apegado à escola antiga, é lá que faz suas pesquisas na biblioteca, onde pede ajuda dos professores quando tem dúvida. Também em Esteio, porém em outro bairro, a casa dele fica distante da instituição de Ensino Médio onde estuda. José agora terá novos desafios. Além de vencer a si mesmo e à timidez, ele terá de gastar com as passagens de ônibus.

Livros foram primeiros pertences guardados

Toda uma engenharia se desenrolou de forma afinada para que o projeto Amor Incondicional ao Próximo, como foi batizado pelos médicos, funcionasse. Buscando transparência, a conta que recebeu a quantia foi aberta em parceria com a Liga Feminina de Combate ao Câncer de Esteio. Imbuído da solidariedade, o dono da imobiliária de Esteio BS imóveis abriu mão do lucro, e o dono do terreno deu um desconto de 20% para fechar o negócio.

Enquanto aguardava a casa definitiva, um aluguel social (recurso que a prefeitura utiliza para abrigar, provisoriamente, famílias em situação de vulnerabilidade) foi oferecido pela administração municipal de Esteio, que também arcou com o frete para a mudança.

Alexandre centralizou a transação junto com a mulher, Simone, 46 anos. Percorreram casas em busca daquela que agregasse tudo o que a família necessitava.

José, que é gremista, viu-se agraciado pela força do time adversário, e de menino tímido, esquecido debaixo de uma ponte, tornou-se uma aposta de pessoas que enxergaram nele a esperança de salvar outros tantos "Josés". Ontem, não continha a alegria cantarolando músicas evangélicas - desde o início do ano frequenta um coral todas as quartas-feiras à noite.

- Ganhei muita oportunidade para melhorar: cursos, livros, tenho computador para estudar em casa, um quarto para mim e posso me dedicar melhor. De como a gente estava lá, na ponte, melhorou bastante - resume o adolescente.

- Não posso dizer que na ponte era ruim. Era a casa que a gente tinha para morar e se era isso que a gente tinha, precisávamos tornar o melhor lugar possível. Agora, esta aqui é um palácio - vibrou a mãe, Tatiana.

A expectativa que gerou nas pessoas não incomoda José:

- Acho até bom, elas acreditam em mim e isso me encoraja a estudar mais.

Também persiste na ideia de atuar como médico.

- Cada vez que eu vejo a saúde mais precária e os médicos cobrando, não querendo ficar em postos pequenos, em vilas, mais eu quero ajudar as pessoas mais carentes. Vou me dedicar a eles, pois os outros já têm médicos que se preocupem - afirmou.

Os livros que resistiram às quatro enchentes que atingiram a casa onde morou de aluguel, no bairro São Sebastião, enquanto esperava pela moradia definitiva, foram um dos primeiros pertences a ser guardados no lar novo. O quarto que José ocupa desde as 10h de quinta-feira não tem porta. O jovem agora espera por ela para poder desfrutar da privacidade de mergulhar em um mundo só seu.

Veja o vídeo feito em junho de 2013, quando ZH contou a história do garoto pela primeira vez.

 

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