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É numa carta intitulada de "Aconteça o que acontecer" que a família dos pescadores Jefferson de Oliveira Rila e Tatiane Padilha ancora o que lhes restou de esperança. Em junho, mas antes que a cheia levasse a casa onde viviam com os quatro filhos, a folha de papel surgiu à beira do Rio Uruguai enrolada dentro de uma garrafa. O remetente: alunos de uma escola de Palmitos, município de Santa Catarina, que, em um projeto da disciplina de Língua Portuguesa, enviaram pelas águas a mensagem que deseja paz, saúde e felicidade. Aos destinatários, é tudo que eles queriam neste momento.
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Lilia Giovana, a filha do casal de 12 anos, sorri ao segurar a carta que levou à escola e até ganhou destaque no jornal de Itaqui - cidade de 39 mil habitantes na Fronteira Oeste onde um quarto da população teve de deixar suas casas por conta da enchente. As covinhas de faceirice da menina contrastam com o cenário ao redor: uma vila improvisada onde 63 pessoas vivem desde sábado passado.
São famílias que tiveram suas casas de madeira, batizadas de volante, retiradas por inteiro de dentro da água. Nesta sexta-feira, o Rio Uruguai atingiu 13,10 metros acima do nível normal e, conforme a Defesa Civil do município, vem subindo a um ritmo de um centímetro por hora. Porém, a esperança é que, até a tarde, as águas, que já atingiram o centro da cidade, estacionem.
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Sob uma lona doada pela prefeitura, Tatiane e Jefferson fizeram sua nova casa. Não conseguiram resgatar nem o essencial: se foram roupas, eletrodomésticos e materiais de pesca. Mesmo com quase nada, Jefferson trabalhava nesta manhã auxiliando a retirar os pertences de outras famílias que, se não perderam tudo, sofrem prejuízos quase totais.
- Era uma casinha de madeira cravada no chão. Foi embora com a correnteza - lamenta Tatiane.
Pouco mais de sorte teve a catadora Maria Alves, 57 anos. Sua casa, assim como a das duas filhas, foi retirada a tempo de dentro da água. Agora, fazem parte do vilarejo de 22 residências recém-formado em um terreno da Rua Osvaldo Aranha que se estende até a calçada.
- Tudo vai embora de Itaqui - diz Maria.
Na expectativa de doações, a mulher dribla a falta de estrutura para cuidar dos nove netos que a acompanham. Eles precisam de comida e, segundo Maria, nem a solidariedade tem sido suficiente para dar conta da demanda. É o que pedem os moradores da vila: ajuda. O pescador Luiz Alves Carneiro 48 anos, ainda era jovem quando a pior enchente já registrada em 1983 devastou Itaqui. A água chegou a inundar a praça da cidade _ mas, em 2014, a cheia não chega tão longe.
- Naquela enchente veio caminhão de tudo que era lugar. Até o Silvio Santos mandou doações. Ninguém viu um sofá ou agasalho - garante, temendo que episódio semelhante se repita 30 anos depois.
Em uma das oito casas estacionadas na rua, Ariovaldo Vieira, 61 anos, contabiliza os prejuízos: cama, guarda-roupa, roupas e eletrodomésticos. Instalado ao lado do Rio Uruguai, ele já soma a perda de suas duas outras residências. Tentou visita-las ontem, mas o que viu foi apenas o topo do telhado. No pequeno espaço de madeira onde toma chimarrão na companhia de dois vira-latas, há uma geladeira e uma cadeira de praia. Onde você está dormindo, seu Ariovaldo?
- No chão - responde.
"Aconteça o que acontecer, esteja em paz com Deus", diz a carta enviada pelos estudantes catarinenses. "Que o lá de cima olhe para os aqui de baixo", pede a população de Itaqui.
Maior cheia das últimas três décadas
Enxurrada como a deste ano não era vista no Rio Grande do Sul desde 1983, que atingiu cidades como Itaqui, Iraí, São Borja e Uruguaiana. Confira abaixo galeria de fotos da época.
Veja imagens das cheias deste ano, que deixam milhares de pessoas fora de casa, principalmente no Norte e na Fronteira Oeste:
Em Itaqui, casas tiveram de ser removidas de dentro do rio: