Por dois anos, a funcionária pública Mariângela Cardoso de Farias travou uma batalha incansável. Procurou diversos órgãos e registrou inúmeras ocorrências policiais para evitar que o pior acontecesse. Mas o esforço foi em vão. Em abril de 2011, sua avó, Celina, na época com 97 anos, morreu pesando cerca de 30 quilos. No atestado de óbito, uma das causas da morte salta aos olhos: desnutrição.
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Mariângela não tem dúvidas de que Celina foi vítima de abandono, maus tratos e abuso financeiro, supostamente praticados por uma outra neta, irmã da servidora, e procuradora da idosa na época. Até o dia anterior à morte de Celina, que era pensionista do Exército, empréstimos teriam sido feitos em seu nome.
Casos como o de Celina são, muitas vezes, o triste capítulo final de agressões cada vez mais frequentes em um país que envelhece em ritmo acelerado. De 2012 para 2013, as denúncias de violência contra os idosos cresceram 80,5% no Rio Grande do Sul, número superior ao crescimento nacional, de 65,5% no Brasil, segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH).
Em Porto Alegre, a Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso instaurava, em média, 2,8 inquéritos policiais e termos circunstanciados por dia em 2009. Cinco anos depois, este número mais que duplicou, saltando para 5,9. Até junho, o número desses procedimentos (1076) já ultrapassava o total de 2009 (1014).
Com sepse, diabetes, infecção urinária e uma fratura no fêmur, Celina morreu algumas semanas depois de ter sido encontrada em um abrigo irregular, onde estava havia pouco mais de um mês sem conhecimento dos demais familiares.
- O que a matou foi o descuido, a fome. Tenho certeza de que ela poderia estar viva. Ela tem uma irmã que mora em Pelotas e, hoje, com 102 anos, está lúcida e bem de saúde - relata Mariângela.
Assim como Celina, as vítimas são, em sua maioria, do sexo feminino (64,09%). Filhos e netos também lideram o ranking dos possíveis agressores, segundo relatório da SDH, sendo os suspeitos apontados em, respectivamente, 51,4% e 8,2% das denúncias recebidas pelo Disque 100.
Negligência, violência psicológica, abuso financeiro e econômico, violência física e violência institucional (aquela praticada em instituições prestadoras de serviços públicos) são os principais tipos de violações denunciadas.
Casos de violência são subnotificados, diz antropóloga
Para a antropóloga Amanda Marques de Oliveira, há uma grande subnotificação da violência contra pessoas com idade igual ou superior a 60 anos. Isso quer dizer que o número de casos é muito maior do que o que consta nas estatísticas. Em sua tese de mestrado, que traçou o perfil das vítimas que buscam atendimento em delegacias, a pesquisadora constatou que a maior parte das denúncias envolvia idosos ativos e independentes.
- Isso não significa, no entanto, que não existam os casos de violência e maus tratos contra os idosos dependentes. O que esses dados mostram é que, como em outros casos de violência doméstica e familiar, há uma fração imensa de conflitos e situações violentas que não chegam a se tornar uma denúncia formal, se mantendo na esfera particular dos domicílios - disse ela, em entrevista por e-mail.
Além do crescimento da população idosa, o aumento no número de denúncias pode estar relacionado a uma maior conscientização da sociedade quanto aos direitos desse grupo. No entanto, os dados não necessariamente significam um aumento da violência em si, defende Amanda.
- A grande mudança pode não estar ligada ao aumento recente da violência contra os idosos, mas sim à conscientização por parte dos idosos e da sociedade de que os conflitos violentos na esfera doméstica são crimes, e, como tais, podem e devem ser levados ao conhecimento dos órgãos responsáveis por resolvê-los.
No ano passado, quase 25 mil idosos morreram no país vítima das mais diversas formas de violência. São 68,6 casos por dia - números que preocupam a coordenadora geral dos Direitos dos Idosos, da SDH, Neusa Pivatto Müller. Segundo ela, o governo vem adotando medidas para reduzir a taxa, como a criação de delegacias especializadas e o recebimento de denúncias de agressões contra idosos através do Disque 100, o que só foi possível a partir de 2011.
A tendência de aumento da população idosa justifica a aflição. O Brasil possui hoje 202,3 milhões de habitantes, segundo o IBGE, e os idosos representam atualmente 7,64% da população, percentual que saltará para 13,44% em 2030.
O agressor mora ao lado
Faz três meses que a aposentada Nedi Grossini, 66 anos, não dorme bem à noite. Às vezes, ela simplesmente não consegue pregar o olho de tanta preocupação. A cena que atormenta a idosa e que ela teme que venha a se repetir é a da agressão sofrida junto com sua irmã, Maria Teresinha, 70 anos.
Em abril, as duas foram xingadas e surradas com pedaços de taquara por um irmão delas e pela nora do homem, que é vizinho de Nedi. O motivo da briga foi a tentativa de cercamento do terreno onde a aposentada reside, feito conforme a metragem acordada na divisão de uma herança, uma chácara de 24 hectares, na zona sul de Porto Alegre.
O caso foi registrado na Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso, mas o processo ainda não foi concluído. A esperança de Nedi é que os agressores sejam punidos para "aprender a lição".
Confira o relato de Nedi:
Na Delegacia do Idoso, falta pessoal e estrutura
Para atender a uma demanda que duplicou nos últimos cinco anos, a Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso, em Porto Alegre, dispõe de apenas 12 servidores. Desses, sete já estariam aptos a se aposentar, pois contabilizam mais de 30 anos de serviço. O número reduzido de funcionários interfere, principalmente, no andamento dos inquéritos policiais.
Segundo o delegado Antônio Machado, são instaurados entre 60 e 80 desses processos por mês, mas apenas 20% são concluídos no prazo de 30 dias. Para acelerar o atendimento, o efetivo, conforme o titular da delegacia, deveria ser reforçado com pelo menos mais quatro pessoas.
- É uma bola de neve. Estamos sempre correndo atrás, nunca conseguimos zerar a fila por falta de pessoal. A nossa estrutura é muito aquém da necessidade.
A chefe de Cartório, Silvânia Vieira Fernandes, admite que a morosidade pode resultar em casos com desfechos trágicos. De acordo com ela, a situação angustia a equipe, que se sente de mãos amarradas e acaba tendo que eleger prioridades.
Foto: Lauro Alves/ Agência RBS
Também há reclamações quanto à estrutura do local, com salas apertadas, acústica inadequada e acessibilidade inexistente. As únicas três viaturas da delegacia especializada estão caindo aos pedaços. A mais velha tem 15 anos e a mais nova, 10. Um veículo novo deve ser entregue nos próximos dias, mas ainda depende da liberação do Detran.
Além das queixas recebidas in loco, a delegacia ainda precisa atender a demandas do Ministério Público e dos governos estadual e federal, que disponibilizam aos cidadãos serviços de disque-denúncia, pelos números 181 e 100, respectivamente.
- A delegacia foi inaugurada há 20 anos, no último dia do governo Collares, com apenas um funcionário. Ela começou politicamente, mas hoje é uma necessidade - avalia o chefe de Investigação, Paulo Paixão.
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