
Criado mudo, suporte com galão de água, caixa de isopor, fogareiro, panelas, potes e um carrinho de supermercado são apenas alguns dos objetos que se acumulam e vão ganhando espaço ao longo do ponto de ônibus na Avenida Salvador França, em Porto Alegre. Junto ao sofá, que delimita o começo da habitação, há vasos com plantas. Na cozinha improvisada, dois frascos de molho de pimenta se destacavam na Estação Itaboraí.
Chovia fino na tarde de quinta-feira enquanto o morador cochilava sentado em uma cadeira, de costas para o corredor de ônibus. Despertou com a aproximação da reportagem de Zero Hora. Mas não quis conversar.
De fones de ouvido, embalava o assento e fazia seu próprio cigarro: restos de tabaco de diversas bitucas guardadas em um pote de café solúvel eram colocados na seda. Indiferentes, duas pessoas aguardavam pelo ônibus na outra ponta da parada.
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Dona de um salão de beleza junto à casa onde vive, na Avenida Salvador França, Silvana Hoy só precisa atravessar a via para acessar a Estação Itaboraí. Mas não para usar o transporte coletivo, e sim para visitar o vizinho, que vive no local há quase meio ano.
Na primeira vez em que chegou à "entrada" da moradia improvisada, deparou com um capacho onde se lia "Bem Vindo". Silvana ofereceu ao morador alguns livros que tinha guardados em casa. Com as obras, que já não tinham mais espaço na sua vida, pensou, o homem poderia conseguir algum dinheiro.
- Ele ficou me olhando sem dizer nada. Depois respondeu: "Tá bom, vou buscar". E nunca apareceu - lembra.
Foi a única vez que entrou em contato com o vizinho, cuja rotina acompanha à distância.
- Ele toma chimarrão todas as manhãs. E cuida muito da "casa", que está crescendo. Colocou uma cortina, que abre quando tem sol... Esses dias até pintou um bidê de roxo - conta.
A organização e o silêncio do homem que vive na Estação Itaboraí são características observadas pela vizinhança. Ainda assim, "sem incomodar", ele desperta diferentes opiniões sobre sua permanência no local.
Para Roberto Mastrangelo Coelho, que passa pelo local diariamente, o poder público deveria "tomar proviências" para retirá-lo dali. Já a dona do salão de beleza, bem como os funcionários do posto de gasolina localizado a alguns metros, acreditam que, apesar das "quinquilharias" acumuladas, sua presença não atrapalha.
- Ele sempre vem aqui pegar água e comprar álcool para o fogareiro. Não conversa muito. Pega as coisas e vai embora. Acho que aconteceu alguma coisa na vida dele para ele ser assim, fechado - opina o frentista Diego Lima dos Santos.
Professor de planejamento urbano da faculdade de arquitetura e do programa de pós-graduação em planejamento urbano e regional da Universidade Federal do Rio Gande do Sul (UFRGS), Eber Marzulo destaca que a população de rua é intrínseca à condição urbana.
- Esse tipo de morador existe desde a época medieval. As cidades foram paulatinamente tendo uma postura de rejeição e negação em relação a essas pessoas, e o estado adotou políticas repressivas, como os albergues com horários de entrada e saída - observou o integrante do projeto Universidade na Rua, que busca conhecer melhor e debater questões relacionadas a moradores de rua.
Eber acredita que o modelo de abrigos adotado na Capital - com funcionamento das 19h às 7h - "expele" os usuários, uma vez que quem vive na rua, de forma geral, não tem disponibilidade ou capacidade de se encaixar em um modelo social baseado em horários e regras.
Na Estação Ipiranga, na mesma avenida, objetos também sugerem uma ocupação
Foto: Bruna Vargas, Agencia RBS

Pessoas dormirem em paradas de ônibus não são um fato incomum em Porto Alegre: na Estação Ipiranga, a poucos metros da Itaboraí, sofá, colchão e edredon, além de dois potes com ração e dois com água indicam a formação de outra moradia provisória. No corredor da Avenida Carlos Gomes, casos se repetem de tempos em tempos.
A prefeitura conta com um serviço especializado em abordagem social, que se aproxima das pessoas em situação de rua para inseri-las na rede de serviços socioassistenciais e garantir seu acesso a políticas públicas. Em alguns casos, os moradores de rua concordam em utilizar espaços de proteção, como os albergues, porém em outros o acolhimento é recusado.
De acordo com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), o morador da Estação Itaboraí é monitorado pelas equipes técnicas e recebe acompanhamento e encaminhamento ao serviço de saúde, quando necessário, desde 2002.