
Porto Alegre, 8h30min. O termômetro em frente ao Mercado Público marcava 7ºC e o movimento era intenso no terminal de ônibus Parobé. O ruído parecia não perturbar o sono de Omarci Carvalho, 48 anos. Contra o frio, além de um cobertor, ele só tinha o carinho do cão, Tobi. O vira-lata tomava conta do carrinho com materiais reciclados que Omarci recolhera no dia anterior. Latia alto contra quem se aproximava. Bastou o dono colocar o rosto para fora do cobertor para o cusco enchê-lo de lambidas.
Em frente a um dos cartões postais da Capital, a cena passava despercebida pela maioria apressada. Tornou-se tão comum que virou paisagem. Há anos, Porto Alegre tropeça na população de rua sem uma política eficiente para reduzi-la. O último levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), de 2011, mostra aumento de 12% em relação ao de 2007, para um total de 1.347. A Fasc pretende dar início a novo censo neste ano.
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A primeira contagem, feita pela Fasc em parceria com pesquisadores da UFRGS, coincide com o início de processo até hoje em discussão na Justiça. A Promotoria de Defesa dos Direitos Humanos do Ministério Público pediu ampliação da rede de acolhimento, que tem pouco mais de 600 vagas, metade em rede conveniada com o município. Em dezembro de 2013, a juíza Rosana Broglio Garbin deu sentença obrigando o município a criar, em até três anos, 300 vagas com prioridade a idosos e pacientes em recuperação de problemas de saúde ou dependência de álcool e drogas. Em junho passado, o município recorreu ao Tribunal de Justiça.
Para o sociólogo Ivaldo Gehlen, um dos pesquisadores da UFRGS que participou da elaboração dos dois censos da população de rua em Porto Alegre, abrir mais vagas não resolve a questão.
- O abrigo é estruturado pela nossa maneira de pensar e de querer que eles vivam. Essas pessoas desenvolveram uma espécie de identidade de rua. Modificar esse perfil é um processo lento e progressivo, e as políticas não preveem esse ritmo, a sociedade quer respostas rápidas - diz Gehlen.
Nas abordagens da Fasc, 64% das pessoas em situação de rua se recusam a ir para um albergue. No inverno, a aceitação chega perto de 40%, mas a maioria ainda prefere a rua a um abrigo para não se separar do pouco que tem: um colchão, um carrinho de supermercado, um fogareiro ou um vira-lata.
O guardador de carros Fábio Dutra, por exemplo, montou um pequeno lar sob o viaduto da Avenida Silva Só com mobília recolhida do lixo e alguns objetos recebidos como doação. Aos 27 anos, desde os nove morando na rua, Dutra adotou a cadela Peluda para lhe fazer companhia. Mesmo a oferta de duas refeições, banho, roupa limpa e uma cama com três cobertores para passar a noite não entusiasma Dutra. Teme que levem seus apetrechos.
- Infelizmente, nem sempre temos como transportar todos os pertences no veículo da Fasc e nem teríamos espaço para colocar tudo no guarda-volumes - explica o coordenador do Albergue Municipal, Franque Hendler.
Os cães, acrescenta, ficam do lado de fora, presos à grade ou esperando o dono voltar. Não há previsão de investimentos para adequar a estrutura.
Para solicitar abordagens à Fasc, use o telefone 3289 4994.
Busca de solução passa por integração de políticas
Aumentar as chances de conseguir um emprego com carteira assinada para facilitar o acesso à moradia digna é um dos objetivos do convênio assinado pela prefeitura com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, na semana passada, para oferecer cursos técnicos a moradores de rua por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).
Em São Paulo, que tem 14 mil moradores de rua, iniciativa semelhante já havia sido implantada pela prefeitura em 2013: dos 388 matriculados, 115 concluíram o curso, dos quais 43 conseguiram empregos formais. O principal desafio é a adaptação à rotina de trabalho e estudo de uma população sem local adequado para estudar e até mesmo tomar banho. Sem contar questões como o baixo nível de escolaridade (em Porto Alegre, 14% são analfabetos e 50% não terminaram o Ensino Fundamental) e problemas com álcool e drogas (49,9%).
- É preciso fortalecer a intersetorialidade das políticas públicas para contemplar toda a complexidade da questão. Esse é o objetivo do Plano de Enfrentamento à Situação de Rua, que reúne 18 órgãos municipais e tem a participação, inclusive, de moradores de rua - diz o presidente da Fasc, Marcelo Soares.
O gari Marcos da Rosa Júnior, 28 anos, é um bom exemplo. Antes de vestir o uniforme laranja para trabalhar, toma café da manhã no Albergue Municipal, onde tem passado as noites desde 2011. Havia ficado sete meses debaixo de marquises depois de se separar da mulher. Perdeu o contato com os pais por causa do crack. Há nove meses longe das drogas, com apoio da rede municipal de proteção, conseguiu economizar algum dinheiro e já pensa no aluguel social como opção para recomeçar a vida.
Embora não existam vagas fixas em albergues, quem costuma frequentar tem preferência e consegue manter o espaço. Há uma série de exigências para os usuários. Ingerir álcool e usar drogas é proibido, mas quem chega embriagado ou sob efeito de entorpecentes não é impedido de entrar. São distribuídos materiais de higiene, mas o banho não é obrigatório. Depois das 22h, os albergados devem deixar as áreas de convivência, onde há TV, e ir para os dormitórios - há um para homens, outro para mulheres e um para travestis e transexuais.
A situação em outras cidades
Nas Capitais
A população de rua cresceu 52% em Belo Horizonte de 2006 a 2014. A capital mineira tem 1.827 pessoas nessa situação (Censo da Universidade Federal de Minas Gerais).
Na cidade do Rio de Janeiro, 5.580 pessoas vivem na rua, 81,8% homens e 69,6% com idade entre 25 e 59 anos (segundo o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade).
Na cidade de São Paulo, havia 14.478 pessoas em situação de rua, em 2011, ante 8.706 pessoas na contagem de 2000 (conforme a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social).
No Interior do Estado
Em Pelotas, a Secretaria de Justiça Social e Segurança começou nesta semana a fazer um censo da população de rua. O Centro Pop costumava atender 28 pessoas e passou a receber 50.
Em Caxias do Sul, os cadastrados no Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua aumentaram 20% este ano, comparado a 2012.
Em Canoas, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social estima 212 pessoas em situação de rua. Há 36 vagas de albergagem para homens e 12 para mulheres.
Modelos de albergagem
Albergue: só oferece pernoite, jantar, café da manhã, banho e cama.
Abrigo: moradia para ajudar na reorganização pessoal.
República: mais avançada, em que usuários contribuem para ficar.
Centro pop: referência especializada que dá atendimento diurno.
Casa de convivência: serviços de assistência e espaço para higiene pessoal durante o dia.
Casa lar: para idosos sem perspectiva de saída de abrigos.
Residenciais terapêuticos: atuam na recuperação de dependentes de álcool ou drogas.
Inverno sensibiliza para situação dos moradores de rua em Porto Alegre: