
Dependente química e vítima de abuso sexual, a mãe de Rafael* o deixou aos cuidados de um irmão, que morreu pouco tempo depois. Com dois anos e sem familiares que pudessem assumir sua criação, o menino foi encaminhado a um dos 106 abrigos de Porto Alegre.
Ali, passou outros 15 anos vendo os amigos chegarem e saírem. Eram adotados, mas Rafael não.
- Quando eu era piá, via os outros indo embora e eu ficando. Batia uma tristeza, uma revolta - contou o jovem, que cresceu sonhando com uma família.
Prestes a completar 18 anos, ele sabe que não será mais adotado. O que não sabe, no entanto, é que não teve essa chance por não constar no Cadastro Nacional de Adoção. É o mesmo caso de outras 128 crianças ou adolescentes, quase 10% dos 1.350 abrigados na Capital. O número foi levantado pelo Ministério Público (MP) nos últimos dois meses.
No caso dessas crianças, que foram destituídas da família biológica, a falha as condena a permanecer nos abrigos: a Justiça determina que elas não fiquem com os pais, mas ainda assim não as inclui na lista de adoção.
- Se houve a destituição do poder familiar, a criança tem de estar no cadastro. Ela não poder ser condenada a não ser adotada, isso é horrível - afirma a vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família Maria Berenice Dias, primeira mulher a se tornar juíza e desembargadora no Estado.
Quando são destituídas da família, as crianças precisam ser incluídas no Cadastro Nacional de Adoção em até 48h, conforme a lei. O problema é que, em alguns casos, os acolhidos esperam há 10 anos pelo registro de seu nome no sistema, como Carolina* e Gabriela*. Embora destituída da família com cinco anos, em 2002, Carolina completou 17 anos em um abrigo sem constar no cadastro. O mesmo aconteceu com Gabriela, que teve ação de destituição do poder familiar julgada procedente em 2004, quando tinha sete anos, mas até agora não foi incluída no sistema. Com 17 anos, a adolescente ainda vive em uma casa de acolhimento.
Perfil das crianças foi a justificativa para a não-inclusão
A Corregedoria-Geral da Justiça afirmou, por e-mail, que a situação aconteceu devido a "um entendimento pelo não cadastramento" da equipe técnica da época, anterior à lei que inseriu a obrigatoriedade do cadastramento, em 2009. Ainda segundo o órgão, "há casos de situações de crianças com faixa etária fora do perfil desejado ou com graves problemas de saúde".
- Se a criança é doente, ninguém pode querer? Isso é uma arbitrariedade terrível. Elas não podem ser privadas do cadastro - opina Maria Berenice.
O Judiciário afirmou que fará a revisão de todos os casos apontados pelo MP ainda este mês.
Mais de 500 crianças esperam por ações judiciais necessárias para a adoção
Outro problema apontado na pesquisa do MP é a demora do encaminhamento das ações de destituição do poder familiar, competência do próprio órgão. O levantamento mostrou que 510 crianças e adolescentes, quase 40% do total de acolhidos, não possuem essas ações. O processo, movido pelo MP contra os pais da criança quando eles não têm condições de criar os filhos, é um pedido para que a Justiça destitua o poder legal da família biológica, trâmite necessário para a adoção. Outros 73 abrigados não têm sequer a ação de acolhimento, que oficializa sua estadia no abrigo.
Conforme a promotora da Infância e da Juventude Cinara Vianna Dutra Braga, responsável pelo levantamento, os abrigados só ficam disponíveis para a adoção depois que sua ação de destituição for julgada procedente.
- Quando a criança ingressa em um abrigo, primeiro é preciso trabalhar com as famílias nuclear (pais) e extensa (parentes), na tentativa de reinserí-la no seio familiar. Se isso não for possível, o MP precisa encaminhar a destituição - explica Cinara.
Conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os acolhidos não devem passar mais de dois anos nos abrigos, ou seja, este seria o prazo máximo para o poder público esgotar as tentativas de reinserir a criança na família biológica. A situação nas casas de acolhimento da Capital, porém, mostra uma realidade diferente: crianças passam a infância e a adolescência nos abrigos, e só saem ao completar 18 anos. Foi por ver adolescentes que ingressaram ainda bebês nesses locais que Cinara decidiu realizar o levantamento da situação jurídica dos acolhidos. Com base nos dados, o MP organiza um mutirão para ajuizar ações de destituição.
- Cada dia que passa no abrigo, a criança é privada da convivência familiar, seja biológica ou adotiva. Vamos analisar caso a caso os acolhidos que não possuem ações e regularizar a situação, dando prioridade às crianças de zero a cinco anos - garante a promotora.
Depois, o trabalho será realizado com grupos de acolhidos que tem de cinco a 10 anos, de 10 a 15 anos e acima de 15 anos. A estimativa do MP é que todas as crianças tenham a situação jurídica regularizada em dois meses.
Quando encaminhada à Justiça, a ação de destituição do poder familiar precisa ser julgada em 120 dias, conforme a Lei da Adoção. Em Porto Alegre, no entanto, há casos em que esse processo leva mais de um ano para tramitar, segundo Cinara. Conforme a Corregedoria-Geral de Justiça, "a tramitação dependerá do caso, pois em muitos há necessidade de acompanhamento dos genitores como, por exemplo, nos casos de drogadição quando eles aderem a um tratamento".
Casal gaúcho levou apenas um mês para adotar irmãos em Minas
- Mãe, posso andar de bicicleta? Aqui se diz bici ou bike? - questiona o extrovertido Felipe, de sete anos.
A dúvida de vocabulário é comum ao pequeno mineiro, adotado por um casal de gaúchos junto com o irmão Vitor, de cinco anos. Os pais Denise e Rafael Maschio, ambos de 28 anos, relatam que a dupla faz de tudo para se adaptar ao Estado, à nova casa e à rotina do casal, que comemora ter esperado apenas um mês na fila do Cadastro Nacional de Adoção.
Casados há dez anos, os dois bateram o martelo na decisão de adotar após fazer trabalho voluntário em um dos abrigos de Porto Alegre. Se cadastraram como pretendentes à crianças de dois a nove anos, independente de sexo ou raça, e com possibilidade de receber dois irmãos. Em um mês, receberam a ligação da comarca de Divinópolis, no centro-oeste de Minas Gerais, onde Felipe e Vitor estavam abrigados. Viajaram às pressas para conhecer os filhos e, depois de 15 dias de adaptação, os trouxeram para a nova casa, em Canoas.
- Depois de termos conhecido os meninos, ainda recebemos ligações de duas comarcas de São Paulo e de uma do Rio de Janeiro, mas nenhuma do Rio Grande do Sul - relata Denise.
Vitor e Felipe com os pais na nova casa, em Canoas
Foto: Lauro Alves, Agência RBS
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Em Minas Gerais, os meninos foram encaminhados à adoção enquanto a ação de destituição do poder familiar tramita, e passados para guarda provisória de Denise e Rafael. No Rio Grande do Sul, conforme a promotora Cinara, o comum é esperar a ação ser julgada antes de encaminhar às crianças para pais adotivos. Na opinião de Denise, falta boa vontade do poder público em tornar a adoção mais rápida no Estado.
- Tenho certeza de que existem crianças no perfil que Denise e Rafael escolheram aqui, mas é preciso que os técnicos responsáveis pelo Cadastro Nacional de Adoção parem de ficar apenas cruzando dados no sistema e comecem a falar com as famílias - argumenta Maria Rosi Marx Prigol, presidente do Instituto Amigos de Lucas, organização de apoio à adoção em Porto Alegre.
Segundo ela, casais que se habilitaram há três anos para adotar apenas uma criança, hoje poderiam estar maduros para receber irmãos, mas é preciso que isso seja incentivado. Conforme a Corregedoria-Geral da Justiça, os pais precisam informar a mudança de perfil da criança desejada, o que ainda será avaliado. "A manifestação do desejo deve ser espontânea e não incutida, já que estamos falando de vínculos de filiação em que crianças e adolescentes serão confiadas a sua responsabilidade e afeto", informou o órgão.
Há um ano à espera de um filho, comerciante lamenta falha no cadastro
Um dos quartos da casa de Paula e Thiago Araujo, em Porto Alegre, já está mobiliado para receber o filho do casal, com uma decoração que serve para ambos os sexos.
- Só não compramos roupinhas porque ainda não sabemos a idade do nosso filho - relata a comerciante de 27 anos, habilitada há um ano no Cadastro Nacional de Adoção como pretendente a uma criança de zero a cinco anos, independente de sexo ou raça.
Para ela, saber que há crianças fora do cadastro na Capital é revoltante.
- Não entendemos como os abrigos podem estar cheios, se há muitos casais sonhando com essas crianças. Quando sabemos dessas falhas no cadastro, ficamos revoltados. Depois falam que a fila não anda por causa do perfil que os pais escolhem - desabafa.
Conforme a presidente do Instituto Amigos de Lucas, que trabalha desde 98 no fomento à adoção, a ideia de que os candidatos a pais querem somente bebês da raça branca é ultrapassada. Dos 32.162 pretendentes ativos no Cadastro Nacional de Adoção, apenas 28% só aceitam crianças brancas e 53% receberiam filhos com três anos ou mais. Na outra ponta do sistema, há 5.545 acolhidos à espera de um lar no país, 684 cadastrados no Rio Grande do Sul.
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* Os nomes dos adolescentes acolhidos citados na reportagem foram modificados para preservar sua identidade.