
Muitos alter egos criados por Woody Allen em seus 44 longas-metragens analisam, mais do que a condição do homem, as angústias do artista. Ou, no mínimo, do sujeito que faz da criação o seu ofício - seja produzindo literatura ou reportagens esportivas. Outras obsessões do cineasta incluem os anos 1920 (sempre idealizados) e os exercícios de clarividência (não raramente achincalhados). Em Magia ao Luar, em cartaz nos cinemas, ele retoma tudo isso, usando a ideia do poder mediúnico como contraposição ao racionalismo niilista dos personagens que sua própria figura consagrou ao longo das décadas.
Duas particularidades do novo filme: o alter ego criativo é um ilusionista, atividade de princípios análogos aos da médium que é sua antagonista, o que escancara a dualidade entre razão e fé que está no cerne da reflexão proposta pelo diretor; e o protagonista, seguindo uma tendência dos últimos anos, não é mais encarnado pelo seu criador. Colin Firth, a quem coube a tarefa que recentemente foi de intérpretes tão diferentes quanto Owen Wilson (Meia-Noite em Paris), Jason Biggs (Igual a Tudo na Vida) e Kenneth Branagh (Celebridades), talvez seja aquele que melhor se saiu na empreitada.
Firth já fora amplamente reconhecido pelo seu talento dramático, em filmes como O Discurso do Rei (2010). Magia ao Luar conquista o público, em grande parte, graças ao seu talento cômico. Sua fala é menos nervosa, na comparação com outras variações desse alter ego. Além disso, contém a pitada de acidez que tempera o bom humor britânico - o mau humor britânico, na verdade. Em um personagem que se caracteriza, antes de qualquer coisa, pela descrença absoluta, o azedume não podia cair melhor.
A reincidência nas autorreferências pode jogar contra, sobretudo porque muito do que acontece nos 97 minutos de projeção é bastante previsível após decorrido o primeiro terço da trama. Nem é preciso ser um especialista em Allen para saber que algo do mundo irracional vai abalar aquele sujeito cético, metódico e aparentemente imutável - qual a dúvida de que será o amor pela médium ruiva de pele delicada, 20 e tantos anos mais jovem, interpretada por Emma Stone?
Contudo, há na construção dramática de Magia ao Luar alguns ingredientes não tão óbvios e, fundamentalmente, um hábil trabalho de roteiro que potencializa o impacto justamente das sequências que revelam as informações mais decisivas da trama, mesmo que essas informações já não sejam mais tão surpreendentes assim. O principal exemplo é o diálogo entre o protagonista e sua tia (Eileen Atkins), já na parte final, em que, de maneira divertida e perspicaz, a mulher manipula o personagem de Colin Firth até que ele admite aquilo que todos na plateia já sabiam - a paixão que desenvolveu pela garota.
Essa sequência faz lembrar aquela de Tudo Pode Dar Certo (2009) em que o rabugento alter ego do cineasta (interpretado por Larry David) conhece os familiares caipiras da jovem sulista por quem se encantou. Conhecemos o seu modo de agir, entendemos o que se passa, sabemos o que vai acontecer ali. Mas a forma como Allen entrega as informações já previamente entendidas pelo espectador, desnudando-os implacavelmente, faz a diferença.
Não é de hoje que o cineasta, grande roteirista que é, se aproveita desse tipo de situação para despir seus protagonistas em todas as suas idiossincrasias - é nelas que está o seu charme, como ele sabe há décadas. A novidade é o distanciamento desses personagens. Todos são encantadoramente ranzinzas, mas é muito mais fácil confundir o Zelig do filme homônimo de 1983 com o Gabe Roth de Maridos e Esposas (1992) do que, para ficar nos mesmos exemplos, o professor de xadrez de Tudo Pode Dar Certo com o mágico old school de Magia ao Luar.
Transferindo a persona de seus protagonistas para outros atores, Allen os trata com um despojamento que até então não possuía. Usufrui de uma liberdade que, a despeito das muitas reflexões que tradicionalmente acompanham o lançamento de seus longas, não tem sido observada com frequência pela crítica internacional. E que é determinante para o prazer da fruição - ainda que Magia ao Luar e Tudo Pode Dar Certo não sejam os dois melhores títulos da atual fase do diretor, as duas sequências citadas são dignas das antologias dos melhores momentos de toda a sua carreira.
O despojamento e a liberdade com que o realizador mergulha em seus personagens afetam o próprio pacto de suspensão da descrença necessário à ficção. Afinal, é justamente quando o jogo de esconder segredos desses personagens está desfeito que seus filmes crescem. O Woody Allen do século 21 (desde o fim dos anos 1990, para ser preciso) é um fingidor que finge uma dor que na verdade existe, parafraseando Fernando Pessoa, mas, além disso, chama o espectador a fingir com ele, convidando-o a participar de um jogo diferente, no qual a imprevisibilidade da trama não é o aspecto mais relevante para adentrar nela.
É claro que há muitos filmes assim, de outros diretores e de outras procedências, especialmente aqueles que apostam na forma como elemento artístico essencial. Em Allen, no entanto, a metalinguagem - é a própria condição do artista, o fingidor, que interessa ao autor - leva essa relação a um alto patamar de sofisticação.
Sob certo aspecto, todos os personagens allenianos, homens e mulheres, têm algo de seu criador. Quando refletem sobre as angústias da criação, alcançam maior complexidade. Uma das grandes notícias dos últimos anos, em seus filmes, não é apenas a transferência desses alter egos para outros atores, mas a libertação que essa mudança representou para o seu processo criativo e, além disso, a maneira como ele compartilha com a audiência a reflexão sobre esse processo.