
A polícia federal não poderia imaginar a dimensão que o caso alcançaria quando abriu inquérito para investigar empresas do então deputado federal José Janene, em 2009. Deparou com indícios de lavagem de dinheiro que culminaram, cinco anos depois, na operação que parou o Brasil e levou à prisão doleiros, altos executivos e agentes políticos e públicos. Documento de 460 páginas da Polícia Federal aberto semana passada detalha a apuração.
"Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou".
A citação bíblica, registrada na abertura do documento de 460 páginas no qual a Polícia Federal pediu à Justiça Federal as buscas e prisões que varreram o país há 10 dias, explica muito sobre a origem da Lava-Jato.
Em 2009, quando abriram um inquérito para investigar empresas ligadas ao então deputado federal José Janene (PP), os federais não sabiam o que estavam plantando. Estavam diante de fortes indícios de lavagem de dinheiro. Ponto. Mas o que germinou ao longo do trabalho, hoje, cinco anos depois, parou o Brasil com os resultados da chamada "Operação Lava-Jato 7, o Juízo Final".
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O que a PF e o Ministério Público Federal colheram em milhares de páginas de investigação é um roteiro bem-acabado do funcionamento de organizações criminosas que sugam recursos do erário e são formadas por doleiros, altos executivos e agentes políticos e públicos. No rastro da Lava-Jato, que lá em 2009 nasceu despretensiosa, sem nome, apenas sob o número de inquérito 714/2009, foi detectado tráfico internacional de drogas, mercado paralelo de câmbio com ramificações internacionais, possível esquema de extração ilegal de diamantes com uso de indígenas, corrupção política, suspeita de financiamento ilegal de campanhas eleitorais, fraude em contratos e licitações da Petrobras, superfaturamento de serviços.
A origem de tudo está na apuração do uso da empresa Dunel Indústria e Comércio Ltda para lavagem de capitais por meio da CSA Project Finance, que teria à frente pessoas ligadas a Janene. Alvo do escândalo do mensalão, o deputado morreu em setembro de 2010. Mas os indícios de crimes reunidos até aquele momento levaram a investigação adiante, com interceptação de telefones e e-mails. O alvo: o doleiro Carlos Habib Chater, que tinha como base de atuação o Posto da Torre.
Foi este tradicional ponto de venda de combustíveis em Brasília que inspirou o nome da operação. Lava-Jato é uma referência a estabelecimentos usados pelo grupo para lavar valores. O posto, por exemplo, não aceitava pagamentos em cartões. Só dinheiro vivo, o que, para a PF, facilitava a confusão entre dinheiro sujo e limpo. Um relatório de inteligência financeira aponta que o posto movimentou, em um único mês, em 2005, R$ 3,05 milhões.
Com Chater monitorado, centenas de mensagens foram registradas até que surge um personagem: Primo, em meados de agosto de 2013. A PF pediu a extensão da quebra de sigilo para capturar também a linha usada por Primo e as de outros interlocutores recorrentes nas tratativas de assuntos escusos com Chater.
A lista de apelidos usados nas conversas era extensa: Zezé (Chater), Greta Garbo, Cameron Diaz, Azurita Azul, Asterix, Samuel L.Jackson, Omeprazol. Em pedidos de renovação de quebra de sigilo à Justiça, a PF esclarecia que Primo ainda não estava identificado. De repente, Primo virou Beto. Está registrado em relatório de outubro de 2013:
"PRIMO - Pela interceptação telefônica foi possível a qualificação deste alvo como Beto, forma como era chamado pelos interlocutores. Nas ligações Beto fala sobre transações e pagamentos que envolvem significativos valores monetários. Muitas vezes utiliza-se termos como carbono, papel e documento para se referir ao dinheiro. Segue abaixo as ligações com maior relevância para a investigação, com grande destaque para a primeira, em que Beto conversa com Carlos Habib, alvo da Operação Lava-Jato da Polícia Federal. Nela Carlos confessa que nem ele sabe como não foi preso na Operação Miqueias, a qual eles se referem como problema, já que realizou muitas "operações", provavelmente, se referindo as ações praticadas junto com Fayed Traboulsi (preso na Miqueias)".
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Também em outubro, um relatório policial informa que os negócios dos alvos, especialmente, de Primo, estão sofrendo prejuízos em função da greve bancária e que naquele período o doleiro esteve internado depois de sofrer dois infartos. Dias depois, em uma conversa, Beto informa a um interlocutor seu endereço residencial (um apartamento com valor de mercado de cerca de R$ 3,8 milhões). Com isso, a Polícia Federal confirma: Primo ou Beto é o doleiro Alberto Youssef.
"Fora encaminhada solicitação de diligências a São Paulo, que culminou com o Memorando n° 0137/2013-NIP/SR/DPF/PR que confirmou residir no local a pessoa de Alberto Youssef, que dispensa comentários sobre sua atuação no mercado paralelo de câmbio há longa data, sendo o ator principal do conhecido Caso Banestado."
Com a identificação de Youssef, nasce, em novembro de 2013, outro desdobramento dentro da Lava-Jato, a Operação Bidone, que tem como foco as atividades ilegais em que está envolvido o doleiro paranaense. O nome é inspirado no filme Il Bidone (A trapaça), de Federico Fellini. Outros dois núcleos investigados dentro da Lava-Jato também ganharam nomes famosos do cinema: Dolce Vita e Casablanca.
O acompanhamento telefônico e telemático a Youssef permite uma visão geral de seus negócios e gastos. A PF flagra até negociações para aquisição de barcos e aviões. Começam a surgir pistas da ligação de Youssef com o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa.
Em e-mail interceptado com autorização judicial, a PF detecta cobrança dirigida a Youssef de viagens de avião e diárias de hotel em nome de Costa. Um perfil do engenheiro, com toda a sua trajetória na Petrobras, é registrado no inquérito.
"Destaque-se que Paulo Roberto Costa é o mesmo em nome do qual foi emitida a nota fiscal da Land Rover Evoque, adquirida por Alberto Youssef, reportada no relatório anterior. Questiona-se aqui por qual motivo Alberto Youssef teria adquirido o veículo, no valor de quase trezentos mil reais, para Paulo Roberto Costa", diz trecho da apuração.
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Costa entra no foco da investigação. O inquérito passa reunir documentos com citações a negócios envolvendo a prospecção de petróleo, por exemplo. Em 17 de março, os federais deflagram a fase ostensiva (com cumprimentos de buscas e prisões) da Operação Bidone, que trata do núcleo criminoso denominado Alberto Youssef.
O doleiro foi um dos presos nesta etapa. Foi capturado com sete aparelhos celulares. Na sede de uma das empresas dele foram encontrados outros 27 aparelhos.
"Foi ainda afirmado por investigados ouvidos durante a instrução do inquérito policial que o mesmo mantinha linhas móveis ponto a ponto a fim de travar suas conversas telefônicas e, com isso, dificultar eventual interceptação", esclarece trecho do inquérito.
Foi nesta etapa que a PF fez buscas em dois endereços em Porto Alegre: na casa do engenheiro Eduardo Antonini e na do jornalista Marcos Martinelli. Conversas de Youssef interceptadas na investigação indicam que um total de R$ 560 mil teria sido enviado aos dois endereços, entregues por um emissário do doleiro. Os dois negam ter recebido valores e ter qualquer ligação com Youssef. Eles não estão indiciados pela PF.
A análise de documentos recolhidos na Bidone fez a apuração mergulhar no cenário de corrupção envolvendo a Petrobras.
- Foi com esse material, com controles de pagamentos, registros de divisão de propina, que se teve a dimensão do que estava ocorrendo na estatal - diz um delegado que participou do trabalho.
Diante do envolvimento de agentes públicos e políticos, a PF adotou a estratégia de ramificar a investigação, abrindo inquéritos por núcleos de doleiros ou fatos apurados. Dessa forma, se surgisse o envolvimento de pessoas com foro privilegiado em um caso, obrigando o deslocamento para cortes superiores em Brasília, a transferência seria específica e não da investigação inteira.
A ideia deu certo. O total do trabalho engloba hoje 12 ações penais em andamento na Justiça Federal do Paraná, algumas já com sentença. A 13ª apuração ainda não se transformou em processo e é a que trata dos mandados de busca e apreensão e de prisões da sétima fase da Lava-Jato, apelidada de "Juízo Final".
Depois da avalanche provocada no país com as prisões feitas no último dia 14, e com o teor das delações premiadas, a expectativa agora gira em torno das revelações que virão de Brasília, das investigações que listam agentes com foro privilegiado.
Na linha do tempo, veja os fatos que marcaram a Lava-Jato: