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O governo de Mianmar deu a cerca de um milhão de rohingyas nesta região costeira do país uma escolha desanimadora: provar que a família vive aqui há mais de 60 anos para ser tratado como cidadão de segunda classe ou ser levado para um acampamento e enfrentar a deportação.
Essa política, acompanhada por novos decretos e legislação, trouxe mais desespero para a minoria muçulmana perseguida há muito tempo, estimulando o maior fluxo de refugiados desde o grande êxodo, há dois anos.
No mês passado, 14.500 rohingyas zarparam das praias do Estado de Rakhine para a Tailândia, com o objetivo de alcançar a Malásia, de acordo com o Arakan Project, grupo que monitora os refugiados rohingyas.
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A crise se tornou uma pedra no sapato da Casa Branca, agora que há uma visita agendada pelo presidente Barack Obama a Mianmar. A administração considera o país uma história de sucesso da política externa na Ásia, mas está preocupada com possíveis novos conflitos entre rohingyas e budistas extremistas com liberdade de ação garantida pelo governo que podem descarrilar a transição já complicada do regime militar para a reforma democrática.
Recentemente, Obama telefonou para o presidente de Mianmar, Thein Sein, e pediu que este tomasse atitudes com relação às tensões e situação humanitária no Estado de Rakhine, informou a Casa Branca.
Os rohingyas enfrentam discriminação há décadas. Tiveram sua cidadania negada e foram expulsos de suas casas, tiveram suas terras confiscadas e foram agredidos por militares. Depois de um ataque em 1978, cerca de 200 mil deles fugiram para Bangladesh.
A mais recente investida começou com um tumulto sectário em 2012, no qual centenas foram mortos e dezenas de suas aldeias foram incendiadas pelos budistas radicais. Desde então, quase 100 mil fugiram de Mianmar e mais de 100 mil estão confinados em acampamentos miseráveis, proibidos de sair.
Conforme as condições nos campos vêm se deteriorando, a pressão internacional força o governo a encontrar uma solução humanitária - só que, em vez disso, parece estar acelerando uma estratégia que grupos de direitos humanos descrevem como limpeza étnica.
- Para muitos rohingyas, a nova política, chamada Plano de Ação de Rakhine, representa a humilhação final, disse Mohamed Saeed, organizador da comunidade em um acampamento perto de Sittwe, capital do Estado de Rakhine.
- As pessoas realmente temem esse plano. Nossa comunidade já não tem quase nada. É isso que querem, que saiamos, ele disse.
Muitos rohingyas vieram para Mianmar no século 19, quando os britânicos governavam tudo o que hoje é Índia, Bangladesh e Mianmar, anteriormente conhecido como Birmânia, mas a exigência de prova de residência desde 1948 é algo impensável para muitos, que não tem a papelada ou estão lá há pouco menos de seis décadas, dizem defensores de direitos humanos.
Quem pode provar residência se qualifica para a cidadania naturalizada, que oferece menos direitos do que a cidadania plena e pode ser revogada. Além disso, eles seriam classificados como "bengalis", não "rohingyas", sugerindo que são imigrantes de Bangladesh e abrindo o caminho para uma possível deportação.
Segundo o Plano, os rohingyas que não cumprirem as normas da cidadania naturalizada ou se recusarem a aceitar a designação bengali seriam levados para os acampamentos antes da deportação.
O Human Rights Watch descreveu as medidas como nada menos do que um plano de segregação permanente.
Para muitos, as perigosas fugas em barcos para a Tailândia com destino à Malásia, país muçulmano que aceita os refugiados, começam em uma praia de areia cinza em Ohn Taw Shi, uma vila de pescadores cercada por coqueiros nos arredores de um dos acampamentos.
Recentemente, com as ondas quebrando na praia, alguns barcos de madeira estavam por ali, aguardando seu uso noturno. Nas proximidades, policiais dormiam em um barraco de madeira no calor da tarde.
Um contrabandista, Chan Thet Moreira, com um celular preso na calça e fones de ouvido pendurados no pescoço, disse que, depois que os barcos de madeira lotaram de rohingyas, navegaram para o norte por cerca de cinco horas para se encontrar com navios maiores.
Lá, em águas da fronteira entre Mianmar e Bangladesh, embarcações que às vezes ficavam paradas por dias ou semanas, tripuladas por bandos armados e muitas vezes brutais, esperam um carregamento de passageiros com destino à Tailândia, de acordo com um relatório interno da agência de refugiados da ONU.
- A temporada anual de contrabando, que começa no início de outubro, quando termina a estação das monções, teve um começo rápido. A polícia queria de US$2 mil a US$100 para cada um dos 20 passageiros em uma das recentes viagens, mas os contrabandistas ofereceram um pouco menos, disse Chan.
A viagem foi cancelada, mas haveria outra tentativa em breve, afirmou.
As autoridades locais são cúmplices do contrabando, de acordo com Matthew Smith, diretor da Fortify Rights, organização que estuda grupos étnicos em Mianmar.
- O tráfico e o contrabando regionais começam com a cumplicidade das autoridades de Mianmar. Já documentamos a polícia e as forças armadas recebendo pagamentos que chegam a até 7 milhões de kyats pela liberação de um barco. Sete milhões de kyats equivale a cerca de US$7 mil.
- Em alguns casos, a própria Marinha escolta barcos lotados de refugiados rohingyas operados por gangues criminosas rumo às águas internacionais, Smith disse.
Muitos rohingyas que querem deixar os acampamentos ou aldeias no norte de Rakhine pagam US$200 só para entrar nos barcos. Uma vez na Tailândia, os refugiados devem pagar um adicional de US$2 mil aos contrabandistas para a segunda etapa até a Malásia.
Alguns, como Nor Rankis, de 25 anos, que disse que queria se juntar a seu marido e seu irmão na Malásia, não pagam nada, sinal quase certo de que será vendida por traficantes na Tailândia.
- Não quero viver aqui; não conseguiria sobreviver, disse ela uma noite enquanto esperava que um traficante viesse buscá-la. Ela tinha posto algumas coisas dentro de um cesto de plástico rosa: um frasco de perfume, um sarongue novo e vitaminas, mas nada para protegê-la contra o sol equatorial que brilha em toda a Baía de Bengala.
Um porta-voz do Estado de Rakhine insistiu que os rohingyas não pertencem a Mianmar e defendeu o Plano, que considera necessário, pois a alta taxa de natalidade muçulmana ameaçava a maioria budista.
- Não há nenhum rohingya dentro da lei. Eles são imigrantes ilegais. Se estão precisando de trabalhadores nos Emirados Árabes Unidos, porque não pedem às pessoas para irem para lá? Disse o porta-voz U Win Myaing, assessor do Ministério de Informação.
Alguns funcionários do governo descrevem o Plano de Ação de Rakhine como uma proposta, não uma política oficial. Mas o governo já começou a levar o plano a cabo pelo menos em um dos acampamentos, o Myebon, a cerca de 100 quilômetros ao sul de Sittwe.
Em um gesto antes da visita do Obama, o governo libertou 15 prisioneiros políticos no início de outubro, incluindo três rohingyas. Entre eles estava Kyaw Hla Aung, de 75 anos, proeminente advogado que foi preso após a violência em Sittwe em 2012.
Dentre os poucos advogados rohingyas, eles foram impedidos de estudar Direito ou Medicina, Hla Aung de Kyaw disse ser ilógica a insistência do governo de que os rohingyas não são cidadãos.
- Meu pai trabalhava para os tribunais em Sittwe há 40 anos. Eu fui estenógrafo de tribunal por 24 anos e depois disso me tornei advogado. Como podem dizer que não somos cidadãos plenos? Disse ele em sua casa de bambu em um dos acampamentos.
Depois de algumas noites esperando por um contrabandista, Nor Rankis nadou pela Baía de Bengala até um pequeno barco de madeira, lotado com pelo menos outras vinte pessoas, que possivelmente seguiria para a Malásia.