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A expressão "bolivarianismo" deriva do libertador Simón Bolívar e do seu ideário de uma América espanhola soberana e unida. Mas também se tornou sinônimo de certo alinhamento verbal incisivo anti-Estados Unidos, seja quem for o parceiro, e de medidas alicerçadas em projetos sociais. Pode até já ter sido exatamente assim. Mas isso na década passada, quando as commodities nas alturas, sustentadas por uma China pujante, lastreavam gestos radicais e bravatas. Dez anos depois, o "socialismo do século 21" se vê obrigado a concessões na economia.
As commodities deixaram de rechear colchões, e até a estatal petrolífera PDVSA, símbolo do nacionalismo chavista, tem apostado em parcerias com multinacionais de origem americana. Em crise, assinou acordo com a Chevron, em maio de 2013, para contrair US$ 2 bilhões a fim de cobrir parte do investimento feito em um campo de petróleo nos arredores do Lago Maracaibo, na cidade de Mene Grande.
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Consultado pelo jornal americano The New York Times, o especialista em políticas energéticas Francisco J. Monaldi, da Universidade Harvard, disse:
- Se a PDVSA tivesse feito isso em outra época, os chavistas a teriam acusado de traição.
O fato é que a empresa não teve alternativa. A economia venezuelana patina, com inflação em 60% e desabastecimento de um terço dos produtos básicos.
O novo momento exige mais pragmatismo, admite o presidente boliviano Evo Morales, talvez o principal seguidor do chavismo. Eleito em primeiro turno para o terceiro mandato, Evo se tornou queridinho do mercado, elogiado até pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Algo surpreendente para quem, quando se tornou o primeiro indígena a governar o país, em 2006, nacionalizou e estatizou, em 1º de maio daquele ano, refinarias e distribuidores de petróleo, gás e derivados. Foi um golpe no Brasil presidido por Luiz Inácio Lula da Silva.
Outra mudança na configuração do poder regional é o jogo de forças entre Executivos e Legislativos. A tendência é de parlamentos mais pulverizados. Sob esse aspecto, haveria polarização, o que pode tensionar a política. No Brasil, um governo de esquerda vai conviver com parlamento mais conservador. Pode crescer a intransigência mútua, dizem os analistas.
Classe média maior diminui impacto das políticas sociais
O brasilianista americano Barry Ames, da Universidade de Pittsburgh, concorda que há tendência de mudança na economia. Países com diferenças de renda pronunciadas, como os latino-americanos, elegem políticos de esquerda, que implementam projetos sociais. Porém, a classe média que surge dessas medidas passa a ter outras necessidades, e muitos buscam candidatos com outro perfil.
- Países como o Brasil não têm uma direita clássica. A população quer políticas de esquerda, que corrijam distorções. O PT tem como contraponto o PSDB, de perfil social-democrata - diz Ames.
E completa:
- Quando a desigualdade é combatida e surge uma nova classe média, há outras demandas e até o desejo de manter o que foi conquistado. É curioso e cruel.
No Brasil, aliás, as recentes eleições dividiram o país, e a presidente Dilma Rousseff, reeleita, não teve saída: aderiu à ortodoxia aumentando os juros.
Mais sinais de reformulação: no Mercosul, Uruguai, Paraguai e Brasil pretendem superar as resistências argentina e venezuelana para se aproximar de mercados como o europeu. A Bolívia também planeja abertura maior. A exportação do seu gás, a grande riqueza do país, é direcionada, praticamente toda, para a Argentina e para o Brasil. Isso provoca uma dependência incômoda. Mas não é só. Tanto Brasil quanto Argentina não vivem um momento de bonança, o que pode significar consumo menor e mais prejuízo para quem lhes vende 90% do seu gás.
E há, na América Latina, a Aliança do Pacífico, integrada por Chile, Colômbia, México e Peru. Na comparação com o Mercosul, é a face mais pragmática. Vinculado aos dois (além de integrante da Aliança do Pacífico, é membro associado do Mercosul), o Chile da socialista Michelle Bachelet empenha-se em aproximá-los. Meta: que a América Latina tenha presença global mais intensa. Seria uma forma de mexer com princípios do bolivarianismo.
- Buscamos uma ponte entre a Aliança do Pacífico e o Mercosul. É errado que os dois blocos virem suas costas uma para a outra. Precisamos convergir - diz o vice-chanceler chileno, Edgardo Riveros.
O Chile tem relação mais próxima com Brasil e Argentina - em 1915, os três criaram o bloco ABC. Talvez esteja agora tentando um ABC mais amplo. A Argentina, em tese mais resistente, já cogita a aproximação. O chanceler Hector Timerman fala em "dialogar para buscar pontos em comum".
Há reconhecimento de que o bloco do Pacífico se contrapõe não só geograficamente ao que é banhado pelo Atlântico. Enquanto o Mercosul demora para consolidar o livre comércio, Chile, Colômbia, México e Peru já zeraram 92% das tarifas dos seus produtos. Seria uma forma de romper o que o historiador argentino Carlos Malamud define como "rigidez institucional", que trava países como o Brasil. Pruridos ideológicos cederiam à urgência econômica.
No Itamaraty, é recorrente a preocupação com a lentidão do Brasil na última década, enquanto outros países elaboram acordos. O empresariado brasileiro pressiona o Planalto a abrir mercados, e o governo busca convencer a Argentina a se abrir.
- O empresariado se vê perdendo mercado internacional - diz Eduardo Felipe Matias, doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP).